Nestes poemas aparentemente tão símplices, o crítico, se se dispõe...
Nestes poemas aparentemente tão símplices, o crítico, se se dispõe a uma análise cuidada, hora a hora se encontra defronte de elementos cada vez mais inesperados, cada vez mais complexos. Tomando por axiomático aquilo que, desde logo, o impressiona, a naturalidade e espontaneidade dos poemas de Caeiro, pasma de verificar que eles são, ao mesmo tempo, rigorosamente unificados por um pensamento filosófico que não só os coordena e concatena, mas que, ainda mais, prevê objecções, antevê críticas, explica defeitos por uma integração deles na substância espiritual da obra. Assim, dando-se Caeiro por um poeta objectivo, como é, nós encontramo-lo, em quatro das suas canções, exprimindo impressões inteiramente subjectivas. Mas não temos a satisfação cruel de poder supor-nos a indicar-lhe que errou. No poema que imediatamente precede essas canções, ele explica que elas foram escritas durante uma doença, e que, portanto, têm por força que ser diferentes dos seus poemas normais, por isso que a doença não é a saúde. E assim o crítico não chegue a conduzir aos lábios a taça da sua satisfação cruel. Se quiser ter a alegria, um pouco menos concreta, de apontar outros pecados contra a teoria íntima da obra toda, vê-se confrontado por poemas como o ...º e o ...º, onde a sua objecção já está feita, e a sua questão respondida.
Só quem pacientemente, e com o espírito pronto, ler esta obra pode avaliar o que esta previsão, esta coerência intelectual (mais ainda do que sentimental, ou emotiva) tem de desconcertante.
Tudo isto, porém, é verdadeiramente o espírito pagão. Aquela ordem e disciplina que o paganismo tinha, e o cristismo nos fez perder, aquela inteligência raciocinada das coisas, que era seu apanágio e não é nosso, está ali. Porque, se falta na forma, aqui está na essência. E não é [a] forma exterior do paganismo — repito — que Caeiro veio reconstruir; é a essência que chamou do Averno, como Orfeu a Eurídice, pela magia harmónica (melódica) da sua emoção.
Quais são, para meu critério, os defeitos desta obra? Dois só, e eles pouco empanam o seu fulgor irmão dos deuses.
Falta, nos poemas de Caeiro, aquilo que devia completá-los: a disciplina exterior, pela qual a força tomasse a coerência e a ordem que reina no íntimo da Obra. Ele escolheu, como se vê, um verso que embora fortemente pessoal — como não podia deixar de ser — é ainda o verso livre dos modernos. Não subordinou a expressão a uma disciplina comparável aquela a que subordinou quase sempre a emoção e sempre a ideia. Perdoa-se-lhe a falta, porque aos inovadores muito se perdoa; mas não se pode omitir que seja uma falta, e não uma distinção.
Semelhantemente, a emoção enferma ainda um pouco do meio cristão em que surgiu para este mundo a alma do poeta. A ideia, sempre essencialmente pagã, usa por vezes um traje emotivo que não lhe é adequado. Em O Guardador de Rebanhos há um aperfeiçoamento gradual neste sentido: os poemas finais — e sobretudo os quatro ou cinco que precedem os dois últimos — são de uma perfeita unidade ideia-emotiva. Eu perdoaria ao poeta que ele houvesse assim permanecido ainda escravo de certos apetrechos sentimentais da mentalidade cristista, se ele nunca, até ao fim da obra, se conseguisse libertar deles. Mas se, a dada altura da sua evolução poética, ele o fez, culpo-o, e severamente o culpo (como severamente, em pessoa, o culpei) de não voltar aos seus poemas anteriores, ajustando-os à sua disciplina adquirida, e, se alguns a essa disciplina se não sujeitassem, riscando-os inteiramente. Mas a coragem de sacrificar o que se fez é a que mais escasseia ao poeta. Tão mais difícil é refazer que fazer a primeira vez. Verdadeiramente, ao invés do que diz o prolóquio gálico, é o último passo o que mais custa.
Assim eu acho o ...º poema, tão irritantemente enternecedor para um cristão, absolutamente deplorável para um poeta objectivo, para um reconstrutor da essência do paganismo. Nesse poema desce-se às últimas baixezas do subjectivismo cristista, indo até àquela mistura do objectivo com o subjectivo que é o distintivo doentio dos mais doentios dos modernos (desde certos pontos da obra intolerável do infeliz chamado Victor Hugo até à quase totalidade da magma amorfa que faz as vezes de poesia entre os nossos contemporâneos místicos).
Exagero, porventura, e abuso. Tendo aproveitado a ressurreição do paganismo que Caeiro conseguiu, e tendo, como todos os aproveitadores, conseguido a fácil arte secundária de aperfeiçoar, é talvez ingrato que me revolte contra os defeitos inerentes à inovação com que aproveitei. Mas, se os acho defeitos, tenho, embora os desculpe, que os apelidar de tais. Magis amica veritas.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 353.Prefácio a Caeiro.
1ª publ.: Obra Poética. Fernando Pessoa. (Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz.) Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1960.