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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O voto popular não é uma manifestação de opinião;

O voto popular não é uma manifestação de opinião; é uma expressão de sentimento.

O operário é interiormente incompetente para discutir a questão social. Sentir-lhe os efeitos não dá maturidade [?] ou competência para a tratar. A questão social, económica, não é uma questão de vida colectiva, mas de vida individual. A questão política — qualquer questão política visa a melhorar ou (...) a vida colectiva como colectiva; enquanto a questão social, económica, visa a encarar a vida colectiva como agregado de vidas individuais. Isto dá uma natureza inteiramente diversa ao voto propriamente político, e ao voto propriamente social.

Discutir por ex. se em determinado país deve existir monarquia ou república, este ou aquele partido no poder é acessível ao mais humilde membro de uma nacionalidade. E é acessível porque essa questão discute-se pelo instinto, não pela inteligência.

A questão política é: o que é, neste [?] momento, melhor para o país?

Qualquer questão social é: o que é, neste [?] momento, melhor para o país?

Qualquer questão social é o que é que, neste momento [...] ajudar, [...] os interesses ou as aspirações, não do país, mas de tal ou tais — [...] classes ou dentro dele? Esta questão exige estudo. A outra não. Exige apenas o sentimento de confiança nestes ou naqueles homens, nestas ou naquelas instituições. O operário é competente para votar na, ou em, República, por este ou por aquele partido político; mas não o é para decidir de questões sociais ou mesmo de questões políticas na sua especialidade. Um operário por ex. que está num partido de que seja chefe o Dr. A[ntónio] J[osé] d’A[lmeida) não faz senão dar um voto de confiança ao partido da chefia daquele homem público, para ele, o partido, estudar particular, especializada — e quanto possível cientificamente as questões administrativas e governamentais que aparecem. A confiança é uma coisa social instintiva; pertence ao sentimento inteiramente (e apenas explicadamente [?] às ideias): por isso está ao alcance de todos, ainda para os mais limitados — desde que não sejam [...] absolutamente [...] da política — ter opinião, entendendo-se por opinião sentimento, sobre ela.

Mas, dir-se-á, precisamente por essa razão, um operário pode votar num partido socialista confiando dele a especializada solução de questões sociais. Analisando, a ambiguidade [?] desfaz-se. O voto político indica a confiança num partido para resolver questões relativas à colectividade, ao país inteiro como país. O voto social indica num partido político a confiança que resolve problemas relativos ao próprio votante, à classe do próprio votante. A diferença é capital. Porque mesmo que se queira retorquir que o motivo de delegação é o mesmo — isto é, o reconhecer o povo a sua incapacidade para raciocinadamente resolver os problemas —, com facilidade se responde que é natural que uma classe ou grupo delegue num partido da sua confiança (que pelo voto lhe indica) o tratar de questões gerais políticas, em que essa classe não entra como classe, nem lucra senão no que lhe caiba compartilhar do lucro geral do país. E isto porque necessariamente não é qualquer indivíduo mas apenas aqueles cuja nativa inteligência os [...] para isso, que pode tomar conta activa nos destinos de uma nação, e ter o poder intelectual necessário para abranger a sociedade como todo [...] e (...) para quem se legisla. Os interesses de classe porém, mesmo politicamente e [...] transcendem a inteligência e a competência da própria classe. Toda a dona de casa, por estúpida que seja, sabe da gerência da sua casa. Todo o comerciante, por humilde que seja de competência ou inteligência, tem claras e nítidas noções sobre como deve tratar do seu negócio. E o camponês mais bronco, atado — improgressivo [?] tem um certo capital de sabedoria para as coisas [...] da sua lavoura, ou do (...) ou do seu trabalho manual.

Sobre o que sociologicamente seja a vida [...], a dona de casa nada porém sabe. O [...] comerciante ignora por completo as vastas questões [...] ao comércio em geral e, muitas vezes, e na sua [...], no seu comércio em particular. O camponês, por inteligente que seja, ignora necessariamente o aspecto social da agricultura, o (...) nem o que propriamente é, sob a sua condição [?] de lavrador, cavador, trabalhador rural.

[...]

1919

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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