Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

FAUSTO (na taberna)

                FAUSTO (na taberna)

Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído

Só sinto um vácuo imenso onde (a) alma tive...

Sou qualquer cousa de exterior apenas,

Consciente apenas de já nada ser...

Pertenço à estúrdia e à crápula da noite,

Sou ser delas, encontro-me disperso

Por cada grito bêbado, por cada

Tom de luz no amplo bojo das botelhas.

Participo da névoa luminosa

Da orgia e da mentira do prazer.

E uma febre e um vácuo que há em mim

Confessa-me já morto... Palpo em torno

De minha alma os fragmentos do meu ser

Com o hábito imortal de prescrutar-me

E não sei onde estou, ou quanto sou,

Em que terreno de ruído e (...)

Enterrei o meu espírito febril.

Mas não é inda o fim. Inda é preciso

Que a morte me desmembre em outro, e eu fique

Ou o nada do nada ou o de tudo

E acabe enfim esta consciência oca

Que de existir me resta.

Sinto um tropel esfuziante e quente

De propósitos-sombras, e de impulsos

Transbordado do cálix da consciência

Para cima da vida... Sinto em mim

Gritos de impulsos, (...)

Sinto que qualquer coisa vai fazer-me

Conceber o horror da acção e ousio

Em que dispersarei enfim o resto

Da minha alma já oca. Cesse, cesse

Para sempre a minha alma de ser minha,

Abafe-lhe a consciência de existir

A minha voz. Acorde a minha voz

Ao gritar os propósitos de sangue

E horror cujo (...) não concebo

E é forçoso que deixe fugir...

                (Alto)

                                                Eia!

Camaradas! A orgia inda vai lenta!

Vamos a mais! Vamos a pôr no berço

As orgias romanas e a fazer

Os nossos feitos desta noite rir

De Nero e de Tibério! Vá que a vida

É pouca para (...) Eia, vamos!

Quem vive além na cidadela? O rei?

Bom. E a rainha? Melhor é. Quem mais?

As damas, os donzeis e os nobres todos

Da corte? Vamos à obra...

Ah, as damas. Violemos essa carne!

Rasguemo-la a espadim e a lança. Somos

A vingança dos servos! dos mandados

As crianças (...) e pequeninos

Seja nossa a hora última e (...)

Dos donzeis

Fogueira e (...) com os nobres todos

Afoguemos o rei no (...) onde

O mijo dos cavalos!

Vamos! Às carnes brancas! Aos veludos!

Não podem vir reforços. Se vierem

Morramos combatendo... A morte é hoje

Seja de hoje o gozo todo. Beba-se

O vinho todo, que a partir da taça

Será bom, pois que o vinho será gasto!

(Lança fogo à taberna... Saem todos de espadas desembainhadas... Correm e dançam pela estrada fora. Archotes agitam-se no ar, dançam, espalham lume... Seguem na estrada... Aqui e além incendeiam as choupanas.)

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 145.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.115, 129).