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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

Tão pouco se assemelha ao politeísmo da Índia,

Tão pouco se assemelha ao politeísmo da Índia, e a diferença foi apontada, com uma distinção subtilíssima e justa, em uma frase de Heródoto, onde se diz que os deuses da Índia eram (são) de forma humana, mas os da Grécia de natureza humana. (intercalar os termos gregos) .

Caeiro, no seu objectivismo total, ou, antes, na sua tendência constante para um objectivismo total, é frequentemente mais grego que os próprios gregos. Duvido que grego algum escrevesse aquela frase culminante de O Guardador de Rebanhos:

A Natureza é partes sem um todo,

onde o objectivismo vai até à sua conclusão fatal e última, a negação de um Todo, que a experiência dos sentidos não autoriza sem a intromissão, para o caso externa, do pensamento. Aqui, como em outros pontos, é Caeiro, como digo, mais grego que os gregos.

Falo de mim, porque, afinal, de ninguém melhor poderia falar. Também me entrego, conforme posso e a índole me indica, ao mesmo exercício literário que Caeiro. E nas composições com que os deuses me concedem que eu entretenha os meus ócios, eu sou, discipularmente, do mesmo paganismo que Caeiro, acrescentando-lhe porém a forma mais precisa que a essência me parece necessitar, e a crença na realidade exterior e absoluta dos Deuses antigos, que a minha índole religiosa me pede sem que eu pretenda furtar-me a essa solicitação. Mas sem Caeiro tudo isto me seria impossível. Eu sou, é certo, um pagão nado. Por um lusus naturae, cuja razão não sei, mas que é curioso que acontecesse a pouca distância no tempo daquele que Caeiro representa, nasci com um temperamento tal, que o objectivismo me é natural e próprio. Mas, repito, eu ficaria, quando muito, presa de um mal-estar instintivo e inexplicável, descrente no cristismo e sem crença possível, se não me tivesse vindo a revelação da obra de Caeiro. Eu era como o cego de nascença, em quem há porém a possibilidade de ver; e o meu conhecimento com O Guardador de Rebanhos foi a mão do cirurgião que me abriu, com os olhos, a vista. Em um momento transformou-se-me a Terra, e todo o mundo adquiriu o sentido que eu tivera instintivo em mim. Exponho estes factos, não só para mostrar o que é, num terreno apropriado, a influência da obra de Caeiro, como para que o leitor, sabendo-me assim grato, e por quanto sou grato, possa dar nas minhas palavras o desconto que julgue dever-se ao que nelas, de excessivo ou de deformador, haja posto a minha grata admiração Posto o que, passo de mim, e vou ao caso geral do que esta obra ingente representa.

Em algumas das considerações, que aqui foram feitas, colheu já o leitor atilado, que já o tenha sido da obra, alguns elementos para compreender a que me refiro.

Que a obra de Caeiro representa uma tendência crescente (adentro de O G[uardador] de R[ebanhos]) para o objectivismo absoluto não há que duvidar, pois que para não duvidar basta ler. Repare-se que esse objectivismo absoluto está ao mesmo tempo no instintivo primário das emoções e dos sentidos, e no instintivo derivado das ideias, porque esta obra é, como todas as grandes obras de todos os tempos, um composto homogéneo onde, a par da profunda originalidade do género de emoções, há a profunda originalidade das ideias, suas pares, que as acompanham, e onde, a par da profundeza que comportam essas ideias e essas emoções, há a grande simplicidade da forma e da expressão ideativa.

Tenho por seguro que muitos que lerem esta obra, dirão, chegados ao fim dela, que é excessivamente simples e fácil de fazer. Teremos, ainda outra vez, o velho caso, já secularmente proverbial, do ovo de Cristóbal Colón (Cristóvão Colombo). Nada há mais fácil que fazer coisas análogas, uma vez esta vista; por certo que nada há mais fácil. O segundo passo é proverbial que não custa, e menos custa quando o primeiro passo é dado pelos outros. Não julgue, porém, um poetastro qualquer dentre os leitores que, a não ser o plágio vulgar, ou o decalque directo de Caeiro, é fácil escrever neste género coisas que sejam sentidas e fortes. Nem julgue — muito menos o julgue — que é fácil, o que é possível, fazê-las originais dentro da mesma orientação. Mesmo, porém, que nada em tudo isto fosse verdade, e que esta obra nada tivesse de original, de profundamente novo, restaria por certo, e isso é inegável, no meio das obras poéticas da nossa época, que ou a introspecção excessiva torna estéreis, ou a preocupação da violência torna absurdas, ou o prejuízo social põe longe da arte, um manancial de pureza e de frescor. Quando mais não pudéssemos ir buscar à obra de Caeiro, poderíamos sempre ir lá buscar a Natureza. Cheia de pensamento, ela livra-nos de toda a dor de pensar. Cheia de emoção ela liberta-nos do peso inútil de sentir. Cheia de vida, ela põe-nos à parte do peso irremediável da vida que é forçoso que vivamos.

E assim, mesmo que não fosse da grandeza que eu creio que ela é, era, ainda, grande e rica. Há horas em que eu creio, afinal, que a verdade completa estará na união destas duas opiniões, e que a obra de Caeiro é maior ainda, porque, a par da sua originalidade profunda e reveladora, ela é uma coisa natural que encanta e livra. São as horas em que, sem que eu esqueça o que ela é de renascença pagã, busco apenas nela consolar-me das malícias e das injustiças da vida. Vou então haurir nestes versos imortais a tranquilidade e o repouso. Porque esta obra, fora de ser o que é de inovador, é um repouso e um livramento, um refúgio e uma libertação.

[Var.:] Vou então haurir nesses versos imortais a tranquilidade e o sossego. Porque esta obra que, salvo pela forma, é completa, é um refúgio, além de ser um livramento; e é um repouso, sobre ser uma libertação.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Prefácio a Caeiro