(…) e aquele tempo perdido em analisar o que nunca se chegou a passar,
(…) e aquele tempo perdido em analisar o que nunca se chegou a passar, a medir os precisos termos de relações que nunca se dariam.
Fora um capricho, não do temperamento, mas da simples imaginação. Cada um fora um sonho para o outro, uma espécie de trampolim para saltar dentro de si mesmo de um esquema de emoções para outro esquema de emoções, de uma possibilidade para outra possibilidade.
Aquela banalidade de vida é que era a realidade da vida dela; aquela impossibilidade de fazer mais que sonhar é que era a certeza dele. O que ela manifestara para com ele fora apenas um sonho em voz alta, e o que ele manifestara para ela uma possibilidade em voz baixa. As vozes harmonizavam-se pela própria desarmonia.
Aquele homem forte e estreito, (...) esse é que era o homem dela; ele, Carlos, era apenas o artista dela. E lembrou-lhe a frase de um amigo seu, a quem alguém repreendera o não reparar numa mulher lindíssima com a frase «O sr. não é um homem?», e a resposta, «Não senhor: sou um artista».
Julgou que o quadro analítico se completaria por fora com o fumo do comboio afastando-se; por isso virou-se para trás de repente e alongou o olhar pela distância em direcção a Lisboa. Mas lembrou-se de que se tinha esquecido de que a linha estava electrificada.
As influências da cultura são muito maiores do que se julga. Amamos em parte com o instinto sexual, em parte com a atracção emotiva, mas também, e em grande parte, com vários versos de vários poetas, certos quadros, memórias de trechos musicais, e abundantes citações de romancistas. Os rapazes que lêem contos policiais e querem ser polícias amadores no bairro não diferem dos que lerem Madame Bovary in anima vili.
Mas a maioria das vezes o momento está fora de lugar ou o lugar longe do momento. O homem certo está errado, ou não aproveita o que lhe dão quando lhe não disseram que lho davam, e por isso mesmo. No fundo, os maridos têm muita sorte, e as mulheres sérias grandes defesas nas contingências do Destino.
E aquele elemento de banalidade, de estupidez mesmo, que oferece obstáculo permanente à própria imaginação, e prende curtos os animais do íntimo desejo, à porta de casa das coisas que se não revelam? E aquele amor a um conforto da superfície da alma? E aquele uso do mesmo homem, aceite como uma maçada sossegada e, por usual, cómoda - o marido parte da vida como o arranjo da cozinha, o passajar de roupa ou o tratar das crianças?...
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 204.«Daphne e Chloe».


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