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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O grande problema do Estado futuro consiste na organização...

Alemanha e a Guerra

O grande problema do Estado futuro consiste na organização com a mínima compressão possível da liberdade. No estado em que as almas estão hoje, não é possível organizar sem oprimir e não é possível portanto um Estado alemão sem uma tirania alemã. Tem-se exagerado, de resto, o aspecto dessa tirania. Os que a “sofrem” parecem não a sentir muito.

Dado que os princípios emanados da Revolução Francesa tendiam a agravar enormemente as naturais tendências de qualquer sociedade a desintegrar-se, e as maiores tendências para a desintegração das sociedades modernas, vítimas da incursão rápida de um grande número de factores (estranhos a essa Revolução alguns, outros presos a ela, outros estranhos, mas misturando-se-lhe), o Estado alemão, se havia de organizar, de disciplinar, de civilizar, tinha, fatalmente, que começar por se opor a essas tendências, por tentar esmagá-las. Tal qual como, entre nós, há pouco, o general Pimenta de Castro, querendo implantar entre nós a liberdade, teve fatalmente que empregar certa violência para com o partido democrático, por ser esse o inimigo da liberdade, e por sinal caiu por não oprimir bastante essa horrenda (...)

O Estado alemão, por isso, tinha forçosamente que ser um estado “reaccionário”. De resto, os outros aspectos da sua vida a isso o obrigavam. O seu carácter de estado hegemónico e guerreiro (a Prússia, Kriegsstaat, como diz Treitschke), as suas tradições imperialistas, a tendência universalista da sua cultura (goethiana ou outra) que, para ser cosmopolita sem ser antinacional, risco que corria, dado o carácter disperso dos estados alemães — tinha de dar à sua própria universalidade um carácter de dureza, de se apoiar à tendência militarista do estado-regente: tudo isto criou o estado alemão, tal qual nós o conhecemos, e tudo isto é, como estamos vendo, fortemente e conscientemente, e habilmente civilizacional. Em contraste com a vida anárquica e dispersa das sociedades extragermânicas, o Estado alemão tomou consciência cívilizacionaI de si próprio; e isso nenhum outro estado europeu ainda fez. É vasto o império inglês, mas a Inglaterra não criou um imperialismo; expandiu-se, mas não civilizacionou o espírito de expansão. O seu império é uma obra de acaso, de indivíduos, de muitos indivíduos, de muitos indivíduos pessoalmente activos e trabalhadores, cada qual tratando de si, ou unindo-se em grupos sem outro fim que um fim estreitamente administrativo, como se viu no sentido estreito e material da estreita obra do seu sumo homem, Cecil Rhodes. Ora, nenhuma nação tem o direito de usar do império (to wield empire) se não é capaz de organizar o império.

Emprego as razões mais evidentes, e deixo de lado as superiores, as mais importantes. Essas jazem ocultas na teoria do imperialismo, que é quase hora de fazer — não imperialismo entendido como domínio pela força (quem o iria teorizar para o nosso pequeno povo?), mas o imperialismo como influenciação civilizacional, que um povo, pequeno ou grande, pode realizar, e de esta ou aquela maneira, consoante é grande ou pequeno.

A coisa que mais urgentemente se impõe hoje em Portugal é a construção de um imperialismo português. Qual deve ser esse imperialismo, de que espécie, agindo de que maneira? Tudo isso sairá da consideração atenta do problema, e do sentido especial que a palavra “imperialismo” terá de tomar neste caso. Para isso, a meu ver, nada pode ter tão férteis resultados como uma aliança espiritual com a Alemanha, que, por ser nossa análoga psíquica, nos deve legar a continuação espiritual daquele imperialismo, daquela atitude anticristã, que ela, por seu grande poder material, não pode doravante tentar realizar senão pela força, e não pelo espírito.

Toda a obra antigermânica, hoje, em Portugal, emana de traidores à pátria porque emana de criaturas desintegradas da nossa alma nacional. Os que querem um Portugal honesto, feliz, rico e honrado, querem a negação da acção civilizacional portuguesa, querem que desçamos ao burguesismo nacional duma pseudonação como a Suíça ou a Bélgica, querem que abandonemos o nosso grande papel na construção do novo mundo, que abdiquemos de realizar em espírito aquilo que realizámos outrora em corpo — o alargamento do mundo e a descoberta de novas terras, de novos mares, de novos céus. Mais alta é a missão portuguesa do que tudo quanto pode sugerir a barriga dos portugueses, nessa pervertida teoria política que toda a chusma de traidores e de idiotas que são os nossos políticos e os nossos jornalistas querem impor a Portugal. Mais alta é a obra, e ela, a ser feita, terá de ser feita quebrando aos pés toda a longa podridão humanitária, democrática, organizando uma aristocracia forte, dominando completamente a nossa plebe ineficaz salvo escravizada.

Realizemos em nossa alma a vinda de D. Sebastião. Realize-mo-la como ela deve ser realizada, seguindo as pisadas da Alemanha, e levando a obra mais além — obra pagã, obra anti-humanitária, obra de transcendência e de elevação, feita através daquela crueldade para com nós próprios que o espírito de Nietzsche, num momento lúcido, viu ser a base de todo o sentimento do império.

Criar em Portugal o sentimento duma missão civilizadora! Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um aríete de encontro às barreiras do nosso espírito — que importa isso, se só assim podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?

Grande e difícil é a obra! Grande e difícil o varrer dos ideais democráticos, humanitários e utilitários. Mas a grande anti-cristã (anti-cristã em tudo, antidemocrática, anticatólica antimonárquica) deve ser feita. Tristes de nós se faltarmos à missão divina que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa, e tais nos fez quais somos, nos impôs quando nos deu este nosso acesso e transcendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas. O resto — a felicidade nacional, a boa administração, a liberdade, a lealdade, a honra — não são senão o lixo que atulha o caminho dos nosso gestos.

Sursum corda!

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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