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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

Clarim claro da manhã ao fundo

Clarim claro da manhã ao fundo

Do semicírculo frio do horizonte,

Ténue clarim longínquo como bandeiras incertas

Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis.

Clarim trémulo, poeira parada, onde a noite cessa

Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,

Guindaste que começa a girar no meu ouvido,

Tosse seca, nova do que sai de casa,

Leve arrepio matutino na alegria de viver,

Gargalhada subida velada pela bruma exterior não sei como,

Costureira fadada para pior que a manhã que sente,

Operário tísico desfeito para feliz nesta hora

Inevitavelmente vital,

Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,

Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas

Abrem, aqui e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma cortina que oscila,

E refresca ilusões e recordações na minha alma de transeunte,

No meu coração banido de epidérmico espírito,

No meu cansado e velado (...)

(...)

(...) e caminha tudo

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras

E rumor tráfego carroça comboio eu-sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —

Sol nos vértices e nos (...) da minha visão estriada,

Do rodopio parado da minha retentiva seca,

Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu-sinto sol rua,

Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos

Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua

Passeio lojistas «perdão» rua

Rua a passear por mim a passear pela rua por mim

Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá

A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,

O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua

O meu passado rua estremece camião rua não me recordo rua

Eu de cabeça p’ra baixo no centro da minha consciência de mim

Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua

Rua p’ra trás e p’ra diante debaixo dos meus pés

Rua em X em Y em 7 por dentro dos meus braços

Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,

Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.

Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.

Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá,

s.d.

«Passagem das Horas». Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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