Em «O Mundo», de 10 deste Julho, publicou o Sr. João de Barros,
Em «O Mundo», de 10 deste Julho, publicou o Sr. João de Barros, a propósito da Guerra, um apelo aos escritores portugueses. O apelo era para que, embora Portugal tivesse (por razões diplomáticas) de não intervir na guerra, eles, representantes pela inteligência da raça portuguesa, declarassem bem alto que estão ao lado dos aliados na presente contenda. O Sr. João de Barros justificava este apelo, não só pela necessidade de se sair do silêncio em que, até agora, têm jazido os intelectuais pátrios mas
também mediante o, conhecido e previsível, argumento de que Portugal se deve declarar nitidamente compartilhador espiritual das aspirações e da causa dos aliados, vistos o seu carácter de povo “latino”, o facto de que os aliados lutam «pela liberdade e pela justiça», pela civilização “latina” e por outras coisas já nossas conhecidas em estas conjunturas dialécticas.
Eu concordo com a necessidade, que o Sr. João de Barros oportunamente apontou, de que os intelectuais portugueses saiam do seu silêncio. Concordo com que, sendo eles — por sua natureza de intelectuais — os orientadores-natos da gente da sua raça, devam, na conjuntura civilizacional presente, dizer qualquer coisa, assentar quaisquer princípios. Levo mais longe do que uma mera concordância o meu assentimento à observação do Sr. João de Barros. Acho que é chegada a hora de se dizer alto e claro ao povo português qual é a verdade portuguesa sobre a guerra, isto é, qual seja a atitude genuinamente e relevantemente nacional que deve surgir perante o aspecto que toma o actual conflito.
Tanto mais concordo com a urgência desta necessidade quanto me parece que nela está envolvida a mais larga urgência, que há, de aclarar um pouco ao povo português qual deva ser, em boa lógica nacional, o sentido do seu destino. E reforça-se em mim o desejo de trazer qualquer contribuição a este assunto, quanto mais pondero que até agora este povo não tem sido senão vítima de ludíbrio baixo e reles de políticos sem carácter, de dirigentes em inteligência e de jornalistas sem patriotismo nem cultura — o que importa muito para um povo que, mesmo nas suas camadas ditas “superiores”, pouco vai além do jornal no seu trato inteligente com as coisas hodiernas.
Proponho-me demonstrar — em contrário do sentido do apelo do Sr. João de Barros — que a alma portuguesa deve estar com a sua irmã, a alma germânica, na guerra presente. Antes de mais nada, indicarei quais os pontos que não trato neste breve opúsculo, quer porque sejam de algum modo estranhos ao seu âmbito, quer porque sejam de uma ou outra maneira desnecessários ao seu fim.
Como o Sr. João de Barros no seu artigo, não me preocupará o problema da nossa participação na guerra. Duas razões me conduzem a esta abstinência. A primeira é que, país pequeno, fraco e desgovernado (por dois regimes de impostores e de ladrões), país colocado fora do teatro directo da guerra, a nossa acção militar ou outra nada traria por si de útil à solução, guerreira ou outra, do problema. Nada pesamos na balança das forças eficientes e por isso qualquer consideração sobre a nossa
devida atitude espiritual não pode envolver uma necessidade de que essa atitude passe de espiritual a activa. — A segunda razão é que — posto pois o problema da nossa intervenção na guerra apenas como problema de conveniência nacional — era preciso para determinar tal conveniência, ou negá-la, que eu conhecesse qual é, deveras, a nossa situação internacional, e eu não a conheço. — Resta a terceira razão; e essa, embora em si de pouco peso, é a de mais directo relevo para o assunto que trato. É que, como desde logo o notou o Sr. João de Barros, sujeito também porventura à consideração das duas razões que apontei, não se trata de determinar qual deva ser o papel do estado português na actual conjuntura, mas sim qual o dos espíritos portugueses perante ela. Resumirei portanto o meu esforço — conforme nisto com a justa exigência limitativa do Sr. João de Barros — a demonstrar que espiritualmente, e pelas várias razões que exporei, a alma portuguesa deve estar com a alma alemã.
Eu disse que havia duas ordens de coisas, relacionadas com este assunto, que não trataria. As primeiras são aquelas que seria desnecessário tratar. A estas me referi no parágrafo concluso. Resta dizer qual é a outra ordem de coisas — aquelas de que disse que eram propriamente, não desnecessárias, mas estranhas, ao assunto tal como tenho de o versar.
São duas coisas apenas. A primeira é a hipótese sobre qual deva ser o resultado da guerra, quer material, quer espiritual, civilizacional. Compreende-se bem que importa pouco, para o estudo presente, qual seja o resultado material e imediato da guerra. Esse resultado depende da acção das grandes forças em choque presentemente, e o nosso reduzido núcleo nacional nada tira nem põe, nada pode tirar ou pôr, para o caso. Esse resultado, de outro lado, afectar-nos-á consoante o estado verdadeiro da nossa situação internacional, e essa, como disse, nem sei qual seja, nem vem para o caso presente, pois que a atitude intelectual, que tomarmos, pouca ou nenhuma importância pode ter para o que depende apenas da desconhecida situação em que o nosso país se encontra internacionalmente colocado. Esse resultado, por último, justamente por se tratar do resultado material da guerra, cai fora da órbita das nossas considerações, que, versando qual deva ser a nossa atitude espiritual perante esta guerra, ex hipothesi se não preocupam com os resultados materiais da guerra, senão nos seus prováveis reflexos espirituais, o que nos coloca já na consideração dos resultados espirituais da guerra.
A consideração dos resultados espirituais da guerra toma dois aspectos, conforme nos refiramos aos resultados directamente espirituais por reflexo dos materiais (...)
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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