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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O decorrer dos dias

O decorrer dos dias

E todo o subjectivo e objectivo

Envelhecer de tudo não me dói

Por sentido, mas sim por ponderado;

Nem ponderado dói, mas apavora.

Tudo tem as raízes na treva

Do mistério e eu sou disso sempre

Demasiado consciente, muito

Atento ao substancial de existir

E à imanência do mistério em tudo.

Cada cousa p'ra mim é porta aberta

Por onde vejo a mesma escuridão.

Quanto mais olho mais eu compreendo

De quanto é escura aquela escuridão;

E quanto mais o compreendo mais

Me sinto escuro em o compreender.

Desde que despertei para a consciência

Do abismo da morte que me cerca,

Não mais ri nem chorei, porque passei,

Na monstruosidade do sofrer,

Muito além da loucura da que ri

Ou da que chora, monstruosamente

Consciente de tudo e da consciência

Que de tudo horrivelmente tenho.

Todas as máscaras que a alma humana

Para si mesma usa, eu arranquei...

A própria dúvida, trementemente

Arranquei eu de mim, e inda depois

Outra mascara (...) arranquei

Mas o que vi então — essa nudez

Da consciência em mim, como relâmpago

Que tivesse uma voz e uma expressão

Gelou-me para sempre em outro ser

Do mesmo antes, já (...), eu.

Assim a própria dúvida, o horror

Do mistério do mundo já de mim

Foram em alma passados, mais além

Fui, e isso que encontrei e em que me falou

Como que o ser, isso que não tem nome

Claramente e pavidamente vi

Vi e não compreendi; só compreendi

Que não há forma de pensar ou crêr,

De imaginar, sonhar ou de sentir,

Nem rasgo de (...) ou de loucura

Que ouse pôr a alma humana frente a frente

Com isso que uma vez visto e sentido

Me mudou, qual se ao universo o sol

Falhasse súbito, sem duração

No acabar, e num momento tudo

Fosse luz, fosse treva numa como

Que mudança por mais que imediata

Estranha ao tempo. Compreendi

Mas o quê? Quando vi e compreendi

Compreendendo, só na incompreensão

Eu encontro o terror disso que foi

Essa revelação.

Tudo que toma forma ou ilusão

De forma nas palavras não consegue

Dar-me sequer, cerrado em mim o olhar

Do pensamento, a ilusão de ser

Uma expressão disso que não se exprime,

Nem por dizer que não se exprime. Vida,

Ideia, Essência, Transcendência, Ser,

Tudo quanto de vago e prenhe de tudo

Possa ocorrer ao sonho de pensar,

Inda que fundamente concebido

Nem pelo horror desse impossível deixa

Transver sombra ou lembrança do que é.

Com que realidade o mundo é sonho.

Com que ironia mais que tudo amarga

Me não confrange fria e negramente

Esta infinita pretensão a ser!

E vi e compreendi, ó alma, e como

Que de compreender morri em mim.

Não há memória que criada fosse

Para servir a ver o que então vi,

Mais fundamenre do que em pura alma

Ou consciência pura. E inda que mais

Eu torne a compreender e a ver rasgado

O véu do Inominável Templo, eu

Tornarei sempre a não saber que vi.

A própria consciência abstracta e pura

Não tem poder para ser consciência

Para essa mais do que revelação...

Oh horror! Oh horror! Sinto outra vez

Essa frieza precursora n'alma

Da suprema intuição. Ah não poder

Fora do ser ou do sentir esconder-me!

Ah, não poder gritar, pedir, deixar-me!

Ah, qualquer coisa mais do que uma luz

Vou sentindo que vai breve raiar

De dentro em dentro no (...) ser...

Aproximar (...) da minha alma.

Morte! Treva! (...) a mim! a mim!

(com um grito pavoroso F. atira-se de encontro à parede, dando com a cabeça uma, duas, três vezes até cair no chão inanimado).

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 121.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.106, 111).