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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O ateísmo

                                        O ateísmo

É (facto estranho) um acompanhamento

Das moribundas civilizações.

Mas por quê? A loucura por que é

Mais sã que a falta dela? Deve ser

Aqui porque a um austero e forte povo

É crença parte dessa austeridade.

Os ligeiros descrêem por ligeiros...

Mais nada. Não confundo eu a descrença

Dos grandes pensadores agónica,

Co'a a descrença adiposa do corrupto

Vulgar, vazia mais que tudo. Sim,

Mas por quê — qual a íntima razão

Que a crença e o sonho sejam necessários

E tudo o mais funesto? Outro mistério,

O mistério moral de lei moral

Que me tolhe o caminho. Aonde via

Claro, reconhecendo-me por cego

Já hesito, duvido e me embaraço.

Horror! eterno horror! horror, horror!

                 (senta-se)

O ser e o ser: é claro. Mas Ser... Ser...

Vazio termo prenhe d'absolutos

Mas ele mesmo... o ser é o ser..

Transcendendo absoluto e relativo.

O Ser é o Ser; é a única verdade

Epigramática no seu vazio.

Logo que pensamento daqui saia

Por impossíveis raciocínios, ou

Por intuições ocas e vãs, delira.

Ironia suprema do saber:

Só conhecer isso que não entende,

Só entender o que entender não pode!

Isto são termos: seu horror é vago.

Mas que liga espaço, tempo, que liga seres,

Que liga um mundo, (...) cores, sons,

Movimentos, mudanças (...)

Que liga qualquer cousa, sim que a liga?

Isto, considerado intimamente,

Afoga-me de horror. E eu cambaleio

Pelas vias escuras da loucura,

Olhos vagos de susto pelo facto

De haver realidade, e de haver ser.

Estrelas distantes, flores, campos — tudo

Desde o maior ao mínimo, do grande

Ao vulgar, quando eu, aqui sentado,

Fixamente o contemplo até que chegue

À consciência sobrenatural

Daquilo como SER, desse existir

Como existência, tremo e de repente,

Uma sombra da noite pavorosa

Invade-me o gelado pensamento,

E eu, parece-me que um desmaio envolve

O que em mim é mais meu, que vou caindo

Num precipício cujo horror não sei,

Nem a mim mesmo logro figurar,

Que só calculo quando nele estou.

Formas da natureza variadas,

Vossa beleza cedo vos senti.

Infante eu era ainda e vinha olhar

Do monte que deitava para o mar

O sol morrer até que o frio cinzento

Da noite a face (...) compungia.

Não sei, não bem me lembro, ainda que tenha

Vagas ideias daquela existência,

Do que senti então. Era talvez

O começo da onda do soluço

Que depois dentro em mim murmuraria.

                                        E hoje,

Não chegados ainda os cinco lustros,

Cansado já e velho. O pensamento

Gasto como a uma folha do punhal

Que seja esmero do possuidor

Ter sempre mui aguda e que, amolando,

Gasta, assim mesmo gasta o pensamento

O sentir. Velho estou. E se não fosse

O meu desesperado horror à morte,

Já buscado a teria. Em tudo vejo

Sombras e medos. Fico mudo, pois,

Mas no horror de saber que me não poupam

Imóvel esteja eu, os (...) todos

Dos inevitáveis.

Lágrimas, vinde — Ah Deus que quase choro

Por não poder chorar-vos.

Acusa a luz, acusa a escuridão

(Disse em dia terrível ao meu cérebro)

Que até o forte sol fez esquecer.

Acendamos a luz. Ah solidão!

1912

Fausto - Tragédia Subjectiva . Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos . Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.98).