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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

Estatelo-me ao comprido em toda a vida

Estatelo-me ao comprido em toda a vida

E urro em mim a minha ferocidade de viver...

Não há gestos de prazer pelo mundo que valham

A alegria estupenda de quem não tem outro modo de a exprimir

Que rolar-se pelo chão entre ervas e malmequeres

E misturar-se com terra até sujar o fato e o cabelo...

Não há versos que possam dar isto...

Arranquem um (...) de erva, trinquem-na e perceber-me-ão,

Perceberão completamente o que eu incompletamente exprimo.

Tenho a fúria de ser raiz

A perseguir-me as sensações por dentro como uma seiva...

Queria ter todos os sentidos, incluindo a inteligência,

A imaginação e a inibição

À flor da pele para me poder rolar pela terra rugosa

Mais de dentro, sentindo mais rugosidade e irregularidades.

Eu só estaria contente se o meu corpo fosse a minha alma...

Assim todos os ventos, todos os sóis, e todas as chuvas

Seriam sentidos por mim do único modo que eu quereria...

Não podendo acontecer-me isto, desespero, raivo,

Tenho vontade de poder arrancar à dentada o meu fato

E depois ter pesadas garras de leão para me despedaçar

Até o sangue correr, correr, correr, correr...

Sofro porque tudo isto é absurdo

Como se me tivesse medo alguém,

Com o meu sentimento agressivo para o destino, para Deus,

Que nasce de encararmos com o Inefável

E medirmos bem, de repente, a nossa fraqueza e pequenez.

s.d.

«Passagem das Horas». Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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