Resposta ao apelo de J. de Barros
Resposta ao apelo de J. de Barros
Quanto mais aprofundarmos o assunto, maiores aparecerão as semelhanças, mais claras as razões para que a nossa aproximação espiritual seja com a Alemanha, e não com os aliados.
Reportemo-nos ao papel civilizacional dos dois países. Já vimos que esse papel envolveu, em ambos os casos, uma idêntica inversão do carácter nacional, em ambos os casos um conceito metódico e organizado da obra civilizacional. Outras, flagrantes, semelhanças existem.
Para o Portugal presente, oprimido e esbatido, como para a Alemanha humilhada do princípio do século passado, o que existe que os levante é uma tradição de império, e, em ambos os casos, uma tradição inteiramente quebrada e envilecida. Em ambos os casos se dá um fenómeno curioso, evocador dessa tradição através dum curioso sentimento de misticismo nacional. No caso da Alemanha é a lenda de Frederico Barbarossa, morto em viagem para o Oriente, e que espera o dia em que, voltando, há-de restituir à sua Pátria o império e a grandeza. (Q. Rückert.) Assim, entre nós, da nossa grandeza ida, do nosso império morto, ficou a lenda mística e nacional de D. Sebastião, o qual também, para além de nós, espera a hora em que regresse para nos restituir a nossa grandeza. Ambas as lendas — bem sei — integram-se, segundo o delírio analógico de certos estudiosos magros destes assuntos, na lenda antiquíssima do Rei Artur. Mas isso é a aparência ilusória. O facto essencial é que, no caso da Alemanha, como no de Portugal, há bases concretas nacionais para que a lenda surgisse. Barbarossa e D. Sebastião — a semelhança mística e nacional das duas figuras é de ordem a fazer pensar, sobretudo quando ela se sobrepõe ás outras semelhanças essenciais, que já vimos, entre os caracteres básicos das duas nações.
A mais nítida obra civilizacional alemã do passado foi a Reforma. Se virmos em que condições nacionais essa obra se deu, não será difícil ver que elas se aproximam, flagrantemente, daquelas em que se deram as descobertas, salvo a superior orientação metódica e científica destas, análogas já não à obra alemã na Reforma, mas ao desenvolvimento organizado do actual Império Germânico. Mas aí há um factor que tudo explica — a nítida individualidade do nosso país, individualidade nítida que não existia nos dispersos estados da Alemanha quando Lutero surgiu. — Aquela semelhança, porém, a que íamos aludir é a da confusão civilizacional em que as duas obras se realizaram. Portugal, se bem que nacionalidade nítida, era nacionalidade emergente; tanto assim que foi fácil, logo que entrou em decadência, ligá-lo a
Espanha. Semelhantemente, na Alemanha da Reforma, a acção alemã é nítida, mas a coesão nacional confusa. Mas, nos dois casos, a obra civilizacional realizada ficou como tradição espiritual, como base para a construção da nacionalidade futura .
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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