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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Há só um problema de pós-guerra: é o problema da organização.

Há só um problema de pós-guerra: é o problema da organização. Conforme esse problema se resolver, se resolverão os outros, todos dependentes dele. Porque de nada serve querer organizar ou a indústria, ou o trabalho, ou outra coisa qualquer que seja, sem primeiro organizar a organização, sem primeiro organizar os organizadores. Dar à palavra “organização”, ou a esse bordão absurdo dos idiotas da Inglaterra, “reconstrução”, um valor mágico ou miraculoso, de sorte que a mera invocação da ideia de organizar misteriosamente dê vista aos cegos, ouvido aos surdos e vida aos mortos — é de mais para uma época que, embora tenha uma mentalidade profundamente retrógrada, se tem por científica. Quem há-de organizar? Como organizar sem organizadores? Não basta a ideia da organização a seguir: temos que ter também homens que organizem. Muitas ideias são, quando não realmente boas, pelo menos aceitáveis; e assim pareceriam, se à testa da sua realização se não colocassem as incompetências do costume. É difícil fazer, mesmo, a crítica de certas ideias, porque, sem querer, fazemos a crítica dos homens que se interpretam. O próprio bolchevismo poderá na verdade ser interpretado pela figuras desmanchadas e reles de Lenine ou de Trotsky — esses infelizes que, em uma época científica, governam a romântica, à (...)

Como, porém, organizar organizadores? O temperamento do organizador nasce, nos seus fundamentos, com o indivíduo; esse ponto está fora da competência de alguém. Mas é possível educar organizadores, para que, sabendo organizar por instinto, saibam organizar melhor por educação.

Sobre o bolchevismo, por exemplo, a única coisa que há de certo é a incompetência pavorosa dos seus chefes; e isso não admira. Totalmente destituídos de cultura científica e moderna, cérebros românticos sem noção nenhuma das realidades práticas,

infelizes que a irrisão do Destino atirou para a celebridade por aquele princípio há muito exposto por Shakespeare, de que «alguns nascem grandes, outros conquistam a grandeza, e a outros empurram-nos para lá». A encenação dos incompetentes é a mais cruel das ironias dos deuses.

Venha o que vier, por esse mundo fora, há-de ser por força transitório, absurdo, mal feito. Digo, «venha o que vier», e aplico a frase à coisa que venha — neomilitarismo, bolchevismo, industrialismo à americana, seja o que for. A falta de clareza mental e de capacidade para a acção superior, isto é, para a acção organizadora, é o característico supremo da nossa época.

O que há a inquirir é só isto: em que pontos deve incidir a organização preliminar? O que é que nós devemos organizar, antes de organizar qualquer coisa? Para isso, devemos, evidentemente, começar por estabelecer, para nós, quais as regras fundamentais de toda a organização. Essas regras, nem por serem intuitivas, têm sido estudadas; muita gente que, ao lê-las, dirá que já as conhece, na verdade nem as conhece a elas, nem a coisa nenhuma. O característico fundamental do incompetente é já saber o que os outros iam fazer, depois de o ver feito.

São três as regras intelectuais da organização perfeita, e elas aplicam-se tanto à organização de um estado, como à de uma oficina. Elas reportam-se a qualquer coisa que se pretenda organizar — mesmo que essa coisa seja um disparate, ou um crime. Não defendo a organização para fins criminosos, ou para o intuito humaníssimo de não fazer senão asneiras; defendo, só, a organização, o princípio de organizar. (Não digo, “da organização perfeita”, porque “organizar” quer dizer “organizar perfeitamente”; organização imperfeita não é organização.)

1.ª regra: simplificação dos fundamentos da matéria a organizar;

2.ª regra: colocação dos executantes da organização, a cada um no lugar que lhe compete;

3.ª regra: centralização dos serviços propriamente de organização.

1918?

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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