O fenómeno religioso é um elemento dissolvente das sociedades.
O fenómeno religioso é um elemento dissolvente das sociedades. Ou a religião é tradicional, e é um elemento de estagnação, de resistência ao desenvolvimento social; ou é uma religião nova e é uma perturbação social, como o foi o Cristianismo no Império Romano. O pior é que a plebe é estruturalmente religiosa, nem pode ser senão religiosa. Por isso a predominância do espírito religioso numa sociedade representa a predominância do espírito popular, a degradação do espírito de aristocracia e escol, pelo qual as sociedades se governam e progridem.
Vemos hoje em conflito, por quase todo o mundo, e por isso entre nós também, duas religiões: o Cristianismo, progressivamente regressante ao tipo católico, e o bolchevismo. O bolchevismo (entendendo por bolchevismo o sindicalismo revolucionário e o comunismo, e não só este último) é um fenómeno reaccionário e religioso. Nada tem de propriamente social, nem podia ter, porque, se o tivesse, não o poderiam adoptar as plebes, incapazes de outra coisa que não de religião.
E fácil provar o carácter reaccionário do bolchevismo, como é fácil provar o seu carácter religioso — mais fácil ainda.
O ódio religioso é sobretudo grande de religião filha para religião mãe. O Cristianismo, que nasceu do paganismo, odiou e combateu este supremamente. O protestantismo, que nasceu do catolicismo, supremamente o odiou e o combateu. Assim se explica o ódio mortal que o bolchevismo vota ao cristianismo.
O bolchevismo mantém a velha mania cristã de se fazer mártir, e de inventar perseguições quando lhas não façam. Sabe-se hoje que grande parte das perseguições feitas aos cristãos — muito embora, perseguindo os cristãos, o Império Romano exercesse o que hoje se chamaria “defesa social” — são puramente míticas, sendo das variadíssimas invenções dos propagandistas primitivos do Cristianismo.
A nossa civilização é organicamente individualista. É-o porque assenta em dois elementos: a cultura grega, que se pode definir como sendo o individualismo racionalista, e o capitalismo moderno, em que o fenómeno concorrência é distintivo. Sempre que a civilização tentou fugir ao tipo individualista, estagnou ou perturbou-se.
Ora o regime concorrencial, desde que chegue a um desenvolvimento intenso, torna difícil a adaptação dos fracos a ele. Torna, com o acréscimo da instrução, igualmente difícil a adaptação dos ignorantes. Por isso os débeis os incultos espontaneamente se revoltam contra ele. Revoltam-se exactamente porque são fracos, pois se fossem fortes adaptavam-se e lutavam. Revoltam-se exactamente porque são ignorantes. Revoltam-se porque têm o rancor do débil ao forte, do indolente ao activo. E como se revoltam? Revertendo espontaneamente a tipos anteriores de sociedade — ao tipo corporativo da Idade Média, rebaptizado de sindicalismo. E é de notar que esta reversão, este ódio ao individualismo económico, se revela nas duas correntes extremas — no integralismo e no bolchevismo. E um fenómeno patentemente reaccionário.
Baseia-se o bolchevismo em dois dogmas — o livre arbítrio (que supõe que o homem é quem dirige os seus destinos, e que a palavra “liberdade” tem qualquer sentido absoluto), e no milagre (pois, pretendendo construir uma sociedade fora do egoísmo, da vaidade, da cobiça humanas — fontes de todo o progresso e de toda a vida social —, pretende por isso mesmo suspender as leis naturais, e à suspensão das leis naturais é que chamo milagre). Nestes dois dogmas — patentemente derivados do cristianismo — assentam os dois misticismos bolchevistas.
O ódio feroz do bolchevismo ao cristianismo é bem o ódio de fanáticos a fanáticos, de uma religião a outra. Não nos iludamos, supondo que assistimos a uma luta de classes: continuamos na fatalidade europeia das guerras religiosas, das lutas de (...) desde que o paganismo caiu, com Juliano, e a paz religiosa abandonou o mundo.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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