Maravilho-me da doutrina de António Mora, e discordo dela…
Maravilho-me da doutrina de António Mora, e discordo dela com um gesto delicado de afastamento. O mal d'stes homens todos - do Ricardo Reis, do António Mora, do Fernando Pessoa, sim, porque sinto outside idolatry, do meu mestre Caeiro também - é que só vêem a realidade. Diversamente, todos a vêem com clareza; todos são objectivistas, até o Fernando Pessoa, que é subjectivista também. Mas eu não só vejo a realidade - palpo-a. Por isso eles são, mais ou menos declaradamente, politeístas, e eu sou monoteísta. É que o mundo considerado com a vista é de uma essencial diversidade. Considerado com o tacto, não tem diversidade nenhuma. Eles são todos, diversamente, mais inteligentes do que eu, mas eu sou mais profundamente prático do que eles todos. Por isso creio em Deus. Às vezes penso que Milton só pôde ascender a um sentimento sublime da Divindade quando, privado da vista, voltou à grande primitividade do tacto, à grande unidade da matéria. E o próprio Satan, que não é senão Deus em sua sombra disforme, lançada pela luz do aparente, não o pôde ele tão fortemente conceber senão quando os olhos se lhe haviam tornado noite.
A variedade do mundo não é variedade senão por contraposição subentendida a uma unidade qualquer. E essa unidade adivinhada é Deus.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 370.«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»