Primeira Pergunta: - Admitindo que haja uma crise ...
Primeira Pergunta:
Admitindo que haja uma crise [...] e económica na Europa (ou na civilização moderna), e que a única solução dessa crise consista na subversão integral do actual sistema económico, quem vai fazer essa subversão?
Não são as classes capitalistas, evidentemente, pois essas estão interessadas na conservação do actual regime económico, e só por dolo ou disfarce poderiam fingir colaborar em qualquer transformação económica radical.
São então as classes designadas como proletariado? Uma alteração radical de um sistema qualquer, económico ou outro, supõe não só a força para o destruir, como também a capacidade para lhe substituir outro. Admitindo que o proletariado tenha a força para substituir o actual regime económico, pode crer-se que tenha a competência para lhe substituir qualquer outro, aquele mesmo que desejam substituir-lhe? O proletariado é de todas as classes sociais a mais ignorante e inculta. Não será por sua culpa que o é, porém o facto é que o é. Para uma obra construtiva de natureza intelectual, como é a criação de um regime qualquer, falta-lhe portanto a base intelectual. Acresce que o proletariado está por natureza historicamente afastado do governo, de qualquer tipo que seja; está inadaptado a governar. Falta-lhe portanto a base, por assim dizer, orgânica. Só tem a seu favor o ter interesse em efectuar essa mudança; porém o interesse em uma coisa nem pressupõe a competência para entender nela, pois o doente, sendo quem mais interesse tem em ser curado, nem por isso entende mais da doença do que o médico, que a não tem.
Nem eles, nem os seus dirigentes governam, não têm tradições mas não podem portanto saber [...] governar para manter o que é, [...] quanto mais governar para transformar, o que exige
[...]
É então uma terceira classe, que nem é bem a classe capitalista, nem ao certo o proletariado? Suponhamos que é, e que essa classe é ou uma classe de técnicos, ou uma classe de proletários intelectualizados, ou qualquer outra assim. Seja qual for, seja o que for, ou essa classe se subordina ao proletariado, ou não. Se se subordina, é o mesmo que fosse o próprio operariado; e o argumento empregado contra este aplica-se àquela. Se não se subordina, porém se lhe impõe, é por uma de duas razões que o faz: ou por influir nele e em absoluto se lhe impor, ou por ser geralmente aceite por ele. Se é por se lhe impor por influência, que garantia tem o proletariado que essa classe, uma vez que fosse efectuada a revolução social, serviria o proletariado, a quem se impõe, e não interesses seus apenas? Não sendo aceite espontaneamente pelo proletariado, prova-se que ela lhe fica sempre estranha. Sendo estranha na oposição e na propaganda, muito mais estranha ficará quando entre os dois se abrir o abismo do poder. Trata-se, então, de uma classe geralmente aceite pelo proletariado? Aceite como? Por se identificar com ele em tudo? Estamos no caso anterior, e essa classe, na verdade fundida no operariado, é como que parte dele, e o argumento dirigido contra o proletariado como agente da transformação social prevalece contra esta classe postiça. E por ser por ele aceite como intelectualmente superior e apta a representar as suas aspirações e pô-las em prática? Que competência tem quem é estúpido para avaliar da inteligência alheia? que competência quem é inculto para avaliar da cultura de outrem? que competência quem é inexperiente na arte de governar e de dirigir para avaliar da experiência de outrem nessas artes, sendo que, ainda, esses tais nem sequer governaram ainda? Quem se impõe à aceitação dos estúpidos, dos incultos, dos inexperientes e incompetentes, força é que se lhes torne ou acessível, ou estimável. Quem é na verdade superior em inteligência não pode tornar-se acessível aos inferiores, nem se ajeita a tornar-se-lhes estimável. Em matéria intelectual não tem o operário inteligência a que apelar [?] [...]
De aqui se conclui que não há classe social nenhuma competente, ou por carência de interesse ou por carência de habilidade, para efectuar a transformação económica que os radicais desejam que se realize. Isto é, admitindo que (...) não há gente para efectuar essa solução.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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