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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O véu das lágrimas não cega.

O véu das lágrimas não cega.

Vejo, a chorar,

O que essa música me entrega —

A mãe que eu tinha, o antigo lar,

A criança que fui,

O horror do tempo, porque flui,

O horror da vida, porque é só matar!

Vejo e adormeço,

Num torpor em que me esqueço

Que existo inda neste mundo que há...

Estou vendo minha mãe tocar.

E essas mãos brancas e pequenas,

Cuja carícia nunca mais me afagará —,

Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,

(Meu Deus!)

Un soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!

Estou outra vez ali.

Afasto do luar externo [?] e raro

Os olhos com que o vi.

Mas quê? Divago e a música acabou...

Divago como sempre divaguei

Sem ter na alma certeza de quem sou,

Nem verdadeira fé ou firme lei

Divago, crio eternidades minhas

Num ópio de memória e de abandono.

Entronizo fantásticas rainhas

Sem para elas ter o trono.

Sonho porque me banho

No rio irreal da música evocada.

Minha alma é uma criança esfarrapada

Que dorme num recanto obscuro.

De meu só tenho,

Na realidade certa e acordada,

Os trapos da minha alma abandonada,

E a cabeça que sonha contra o muro.

Mas, mãe, não haverá

Um Deus que me não torne tudo vão,

(ou) Um outro mundo em que isso agora está?

Divago ainda: tudo é ilusão.

Un soir à Lima

Quebra-te, coração...

17-9-1935

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

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