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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

REPÚBLICA E RELIGIÃO

Iconoclasta

REPÚBLICA E RELIGIÃO

Neste ponto, mais do que em nenhum outro, precisa a democracia portuguesa que lhe apontem o verdadeiro caminho.

O argumento (de V. de Vilhena, [...], etc.) não vale nada. À mão está a Igreja logo que esteja sob as leis do país, como deve estar tudo quanto nesse país existe; nem mais é justo, nem mais é preciso.

A propaganda anticlerical tem, no nosso país, tido uma orientação péssima. Tem sido quase tão má como a propaganda anti-clerical francesa, com a agravante, que a francesa não tem, de ser em métodos e (...) estrangeira, tirada da França, no nosso caso. Ora nós somos portugueses, que não franceses. O vago misticismo que nos caracteriza — e que é de todo ausente do espírito francês — não pode ser desdenhado, com risco de preparar uma reacção tremenda. Incutir positivismo à alma portuguesa é esforçar-se por matá-la. O português pode não ter necessidade de crer, mas tem, sempre, de divagar e sonhar.

Estas questões de psicologia são mais importantes do que a muita gente — aliás estúpida dentro de concebíveis limites — parece.

Conta-se entre os nossos propagandistas anti-religiosos gente que não soube distinguir entre uma teoria e uma lei, entre um facto científico e um sistema de metafísica baseado sobre dados da ciência. Basta-lhes ou que um facto seja afirmado por um homem de ciência para que seja crível; e se se dá o caso de esse facto vir de encontro às crenças religiosas, põe as mãos no fogo pela verdade dele. Assim temos idiotas que ignoram que Os Enigmas do Universo de Haeckel é uma obra em grande parte de metafísica. Temos desgraçados que afirmam que a c[iência] nega ou desprova a imortalidade da alma, quando o facto evidente é que não há ciência nenhuma sob cuja alçada esteja esse problema, nem que tenha elementos para sequer conceber possível a sua solução. O problema da imortalidade da alma é puramente metafísico; nada tem com a c[iência]. Quem quiser crer na imortalidade da alma pode fazê-lo, que nenhuma ciência lhe pode dizer nada. (Tão idiota é Haeckel ao querer provar a mortalidade da alma, como (...) ao querer responder-lhe nos mesmos termos — idiotas porque julgam fazer ciência, quando é metafísica que fazem.)

Quais devem ser as relações entre o Estado o a Igreja, em uma democracia?

Vejamos primeiro — tão rapidamente quanto for possível à necessidade de clareza — em que basicamente difere o espírito republicano do espírito monárquico; porque — e este ponto parece ser quase desconhecido, e não só em Portugal — não há sociologicamente mon[arquia] e rep[ública]; mas espírito monárquico e espírito republicano, o que é importantemente diferente.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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