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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Carta a Mário Beirão - 6 Dez. 1912]

Lisboa, 6 de Dezembro de 1912

Meu caro Mário:

Recebi, há dias, a sua “plaquette” “Cintra”, que muito lhe agradeço. Além de ter demorado um pouco o responder-lhe por não sei que razão propriamente definível, demorou-me um pouco mais, ao pensar em escrever-lhe enfim, o não saber bem o que lhe hei-de dizer, que V. já não saiba, da alta opinião que tenho do seu génio. A “Cintra”, porém, se não me revela esse génio sob forma nova — porque eu já conhecia, de lho ouvir e de o ler, o soneto “Ausente” escrito em estilo idêntico — confirma essa revelação e mostra-me quão artisticamente certeira tem sido, e continua sendo, a sua ascensão. Desde que lhe conheço estilo definidamente próprio, lhe noto a perfeição artística como flagrante característico. A sua evolução não tem sido para maior perfeição na forma, senão porque tem sido para maior perfeição da ideia. A sua prodigiosa interioridade tem ido complicando-se, e a forma tem seguido, naturalmente, essa complexização.

V. hoje é tão perfeito e muito mais perfeito do que era quando escreveu “As Queimadas”. Este paradoxo diz a verdade. O que era subtil tornou-se hiper-subtil, e a perfeição da expressão acompanhou perfeitamente essa subida da sua alma.

Isto podia acontecer sem V. ter originalidade. O que de mais curioso há em si é que V. a tem, e eloquentemente. Estou-lhe dizendo coisas que V. já sabe que eu penso; mas V. notará que, de novo, nada tenho para lhe dizer.

Permita-me que lhe faça, a par disto, a minha acompanhante observação de sempre. Não se disperse, “nem mesmo dentro em si próprio”. Cuide em não perder a noção do conjunto. A sua forma escusa de subir mais. A complexidade da sua ideação tão original, tão interior, tão de fogo e sombras, escusa de se complicar mais ainda. O que é preciso obter é aquela qualidade que os gregos tiveram maximamente — a noção da poesia como “um todo composto de partes”, e não aquela em que V. tende a cair — pelo género da sua intensa inspiração — a da poesia como partes compondo um todo.

Sei bem, acima disso, que o género da sua inspiração, o seu modo de sentir, o faz compor mais por sobreposição, do que por cristalização, de sensações. A sua arte, porém, é, no detalhe, tão equilibrada que não parece que seja esperar impossíveis o esperar que atinja o equilíbrio no “todo”, no “conjunto”. De resto, na sua idade, aquele poeta inglês de quem Lhe tenho falado como seu parente espiritual, John Keats, tinha — além de menos perfeição no detalhe, quanto à forma e quanto à ideia — ainda menos cuidado no conjunto do que V. tem. E ele mais tarde — e pouco mais tarde foi, porque morreu aos vinte e cinco anos — atingiu, em cinco ou seis poesias, o equilíbrio perfeito não só de ideia e forma, mas também de detalhe e conjunto. Se ele dava muito menos esperanças do que V. de o fazer; se na mesma idade que V. era espiritualmente inferior — por que razão não atingirá V. a perfeição que ele veio a atingir, superiorizada pela sua maior complexidade e intensidade de alma ?

Digo-lhe estas coisas como crítico, e digo-lhas porque sei que V. me conhece suficientemente para nem sequer me supor quase capaz de lhas dizer com oculta intenção irónica ou malévola. Eu, que não sou nem malévolo nem irónico para quem me fere ou irrita, não havia de ir sê-lo para V., a quem tanto estimo e admiro.

E, mais, digo-lhe estas coisas críticas porque tenho a certeza que V. subirá no género de perfeição onde V. ainda se mostra jovem. Se eu julgasse que essa perfeição lhe seria inatingível, ficaria no elogio, dedicadamente, e não Lhe faria estes reparos onde, garanto-lhe, o amigo está tanto como o crítico, e tão empenhado o português em que V. realize através de si, em plena altura espiritual, o que puder dar à nossa Raça, como o artista em que V., de ascensão em ascensão, suba até onde estão os deuses, e receba deles a coroa que não murcha, porque as suas folhas são daquela matéria de que as coisas eternas são divinamente feitas.

Escreva-me quando puder; cumprimente em meu nome o Vila-Moura, a quem (diga) breve escreverei; e creia que ninguém mais sinceramente e confiadamente o felicita e o abraça do que o seu muito amigo e fervoroso admirador.

FERNANDO PESSOA

6-12-1912

Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

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