Os efeitos da guerra sobre a literatura dependem…
Os efeitos da guerra sobre a literatura dependem em parte das consequências políticas da guerra. A determinação d'esses efeitos depende, portanto, da determinação — por enquanto muito difícil, sobretudo nos seus detalhes que para o caso muito importam — d'estas consequências. Há efeitos literários, porém, que a guerra produzirá simplesmente como guerra, independentemente dos seus resultados políticos, só pela perturbação da sua prolongada presença. Não é difícil determinar esses efeitos, que são de três ordens.
A literatura das criaturas inferiores — dos Georges Ohnet, dos Anatole France, dos Edmond Rostand — sofrerá uma grande transformação. Essa pobre gente, que, no longo e injusto período de paz entre a guerra de 70 e hoje, se aplicou a ter atitudes superiores, sem que para isso houvesse nascido, passará a interessar-se mais pelas grandes realidades da vida, que a guerra, presença quotidiana da Morte, deixará bem lembradas. Eles tornar-se-ão ao mesmo tempo mais humanos e mais modestos. Abandonarão a difícil tarefa de ter opiniões, mesmo alheias, e sentimentos estéticos, mesmo próprios; passarão a ter uma orientação psíquica plebeiamente comedida, como convém a gente que escreve para o chamado «grande público» (deputados, costureiras e membros das Sociedades nacionais de belas-artes). E assim este género de sapateiros, que hoje tocam o rabecão da arte para os ouvidos da estupidez cosmopolita, passará a trabalhar no único sentido que Deus lhes permitiu — o folhetim patriótico ou amoroso, mais quotidiano do que nunca.
A literatura dos novos românticos (futuristas e cubistas) desaparecerá por completo, dada a necessidade de reconstruir as cidades e as pontes.
O campo da literatura superior (cuidadosa e esotericamente vedado aos olhares do público) ficará definitivamente entregue à grande geração que completará a céu e estrelas a obra doentia iniciada pelos simbolistas. A grande arte futura levará ao seu luminoso extremo a atitude decadente, que cultivará com escrúpulo. Essa arte será toda de desdém pelo povo, de aversão pelos velhos temas do amor, da glória e da vida, de indiferença pela pátria, pela religião, pela humanidade, por todas as coisas com que a sinceridade dos ignóbeis se preocupa. Será o anarquismo dos superiores, sem explicação, sem utilidade e sem desculpa. Orgulha-me constatar que alguns raios d'essa luz futura tocam já, com seu fulgor mortiço, o pendão do MOVIMENTO SENSACIONISTA, que, revelado primeiro através de «Orpheu», de dia para dia conta em Portugal, seu país de origem, um número maior de aderentes.
FERNANDO PESSOA
Sensacionista
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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