A inteligência elabora elementos vindos do exterior,
A inteligência elabora elementos vindos do exterior, isto é, trabalha sobre dados dos sentidos. Esses dados são de três espécies — os que são propriamente sensações, dados directos dos sentidos; os que resultam da transmissão directa de sensações e impressões alheias, colhida no convívio social; e os que resultam de influências indirectas, impressões colhidas em livros, em museus, em laboratórios. Os dados directos dos sentidos são, em si mesmos, necessariamente limitados, pois cada um de nós é só quem é: não vê senão com os próprios olhos, nem ouve senão com os próprios ouvidos. Não vemos nem ouvimos bem e profundamente senão quando a inteligência, ampliada pelos outros dois factores ou por qualquer deles, amplia as nossas sensações, com as quais insensivelmente colabora. Vemos e ouvimos melhor — no sentido de mais completa e interessantemente — quanto mais ampla e informada é a inteligência que está por trás do nosso ver e ouvir. Por isso com razão disse Blake: “Um néscio não vê a mesma árvore que vê um sábio”. (Um néscio e um sábio não vêem a mesma árvore).
Segue, pois, que os dados do exterior serão tanto mais completos e sugestivos quanto maior for a formação da inteligência pelas impressões colhidas no convívio social, ou pelas impressões colhidas em livros, museus, em laboratórios. À soma das primeiras impressões chamamos vulgarmente experiência, cultura à soma das segundas. Estes dois elementos, directo e indirecto, reflectem-se um no outro: o convívio social será um elemento importante ou não na formação mental conforme a cultura da sociedade com que se convive. A cultura é o elemento importante — quer se receba directamente, pela leitura ou o estudo, quer se receba indirectamente, pelo convívio com os que a têm. “Só um parvo”, disse Bismarck, “aprende pela experiência; eu aprendi sempre na experiência alheia”.
A cultura, porém, não é um resultado inevitável; não existe se não houver no indivíduo a capacidade de cultura, e existe no indivíduo, como resultado, na proporção em que existe essa capacidade. A cultura é um alimento mental, e o alimento, para que nutra, tem que ser assimilado. Assim o a quem chamamos um homem culto é aquele que tem a capacidade de assimilar cultura, de transmudar as influências culturais em matéria própria do seu espírito, e o que de facto adquire essas influências. De resto, a capacidade de cultura leva o indivíduo inevitavelmente a procurar cultura.
Há três tipos de cultura — a que resulta da erudição, a que resulta da experiência translata, e a que resulta da multiplicidade de interesses intelectuais. A primeira é produzida pelo estudo paciente e aturado, pela assimilação sistematizada dos resultados desse estudo. A segunda é produzida pela rapidez e profundeza naturais do aproveitamento do que se lê ou vê e ouve. A terceira é produzida, como se disse, pela multiplicidade de interesses intelectuais: nenhum será profundo, nenhum será dominante, mas a variedade alargará o espírito. Daremos exemplos de todas do que existiram em três grandes poetas: vemos a primeira em Milton, que se preparou conscientemente para a sua obra poética — qualquer que houvesse de ser, pois em jovem não sabia qual seria — pela posse do grego, do latim, do hebreu e do italiano (todos os quais não só lia, mas escrevia), e pelo estudo dos clássicos em as duas primeiras línguas. Vemos a segunda em Shakespeare, pessoa pouco lida e estudada, mas intenso e profundo em aproveitar tudo que via e ouvia, a ponto de involuntariamente simular uma erudição que verdadeiramente não tinha. Vemos a terceira em Goethe, que nem tinha a erudição de Milton nem a ultra-assimilação de Shakespeare, mas cuja variedade de interesses, abrangendo todas as artes e quase todas as ciências, compensava na universalidade o que perdia em profundeza ou absorção.
Um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidades de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba. Nem há nisto mais que um paradoxo aparente. Um poeta que se deu ao trabalho de se interessar por uma abstrusão matemática tem em si o instinto da curiosidade intelectual, e quem tem em si o instinto da curiosidade intelectual colheu por certo, no decurso da sua experiência da vida, pormenores do amor e do sentimento superiores aos que poderia ter colhido quem não é capaz de se interessar senão pelo curso normal da vida que o afecta — a manjedoura do ofício e a arreata da submissão. Um é mais vivo que o outro pelo menos como poeta: de aí a relação subtil entre as coordenadas de Gauss e a Amaryllis do momento.
Um é um homem que é poeta, o outro um animal que faz versos.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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