Ricardo Reis: O REGRESSO DOS DEUSES
Ricardo Reis
O REGRESSO DOS DEUSES
Os deuses não morreram: o que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixámos de os ver. Ou fechámos os olhos, ou entre eles e nós uma névoa qualquer se entremeteu. Subsistem, vivem como viveram, com a mesma divindade e a mesma calma.
Falamos muito, e com hipocrisia, no sentimento que temos da beleza antiga, e das civilizações mães da nossa, e que foram pagãs. Mas nós não temos a alma grega nem a alma romana. Amamo-las de pertil, incorporeamente. Nada da alma antiga está em nós ou connosco. A nossa ânsia de beleza clássica é toda cristã na sua fúria de perfeição, no seu desassossego.
O sentimento que conduzimos, para amá-las, até ao soclo das está tuas helénicas, é um insulto a elas. Amamos a beleza demasiadamente: os gregos não a amaram assim. Para o seu sentimento passava a calma da lucidez com que viam. Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente. Por isso pouco sentiam. Daí a sua perfeita execução da obra de arte. Para executar a obra de arte com perfeita perfeição é preciso não sentir excessivamente a beleza que se vai esculpir. A arte grega era toda de equilíbrio e (...). E era a arte de quem via sabendo ver.
Nós levamos para a sensação de uma estátua o sentimento, translato, que o cristianismo nos ensinou a levar para a adoração de Cristo na cruz, da perfeição moral, do ascético e do casto. Não é deslocando a direcção do nosso olhar iludido que conseguimos torná-lo lúcido e calmo. É criando em nós um novo modo de olhar e de sentir.
A mais antiga tradição da nossa civilização é a tradição grega. Devemos reatá-la. Temos que nos criar uma alma grega, para podermos continuar a obra da Grécia. Tudo posterior à Grécia tem sido um erro e um desvio. As nossas instituições políticas sofrem do colectivismo romano e do sentimentalismo Cristão. Misturámos à dureza administrativa de Roma a moleza humanitária dos sermões de Cristo. E uma prova de quão longe andamos da alma grega, como ela era verdadeiramente.
Só a ciência é que evolui. Nada mais evolui. Nem política, nem artes, nem costumes comportam evolução. Podem comportar diferenças. Evolução não comportam. Só o que é adquirir conhecimentos evolui porque evoluir é aumentar.
Não há arte senão a arte grega. Não há beleza senão como a Grécia a criou. Reconhecemos isto — muitos de nós — obscuramente. Na realidade, a nossa alma anda tão longe disso que todos os dias traímos a uma linguagem mãe, a (...) Grécia Antiga.
O nosso romanismo secou-nos, e o nosso cristianismo apodreceu-nos. Ficámos secos e pôr isso moles.
Apareceu-nos uma grande ocasião para reconstituirmos, em ponto grandioso, a civilização grega. Foi quando as descobertas apontaram à nossa civilização o caminho único [?] — a escravização das raças negras, levando à aristocratização integral das raças brancas. O nosso cristanianismo atravessou-se; falhámos. Mas o nosso romanismo deixou-nos ir dominando essa África que não utilizámos para a civilização para através de dominá-las não nos aristocratizarmos; utilizámo-las para o nosso comércio apenas. Podendo ser hoje uma raça superior e culta, toda aristocrata, somos uma crista reles de escravos reles e reles patrões de escravos. Não sabemos mandar nem obedecer; não sabemos querer ou pensar. O verme cristão adoece tudo dentro de nós. Já nada nos modifica nem nos faz erguer.
As nossas vidas são cheias de absurdos e de abdicações. Não temos ousadia em nada. Quando julgamos ousar, é que temos febre. Ousamos febrilmente, com demasiada noção do risco e demasiada embriaguez do perigo. Somos incompletos e infecundos. Nascemos escravos. O nosso humanitarismo é uma grilheta que nos pusemos. Não sabemos mandar. Não sabemos sentir, não sabemos sequer ver. Há mais de vinte séculos que seguimos um caminho errado, e nem esse seguimos persistentemente.
Já não sabemos regressar ao que nunca devíamos ter deixado. O nosso helenismo nada adivinha ou percebe da Grécia Antiga. O nosso amor ao império romano é uma doença dos mais doentes entre nós. As próprias perversões e crimes dos impérios idos são incompreendidos por nós. Julgamos que são como os nossos. Amamos na antiguidade o que ela tem das nossas consciências, mas ela nada tem da nossa consciência. A nossa ignorância é profundíssima e a nossa (...).
Não progredimos nem (...). Nada temos que a Antiguidade não tinha, e perdemos muito. Nada ganhámos de essencial. Salvo o que a ciência acumulou — e não podia deixar de acumular — não progredimos em nada. Na metafísica não progredimos, na arte não progredimos e em felicidade não progredimos. Sabemos o mesmo que sabiam os gregos do espírito essencial do universo. Nenhuma beleza criámos que substituísse a valer a beleza que os gregos criaram. Nenhum sistema de administrar e reger inventámos que produza os homens e equilibre os estados como o sistema que os gregos tinham. O progresso seria termos progredido nessas coisas. O resto passou-se à superfície da nossa vida e nada nos dá que valha a pena ter-nos dado.
Fazei a vós próprios esta pergunta — desejaríeis vós viver agora ou na Grécia Antiga? Sei o que me responderíeis, se sois lúcidos e sonhadores. Para que ter progredido para querer antes o passado longínquo do que o presente?
Sim, nós não progredimos senão na ciência. E com isso o que progredimos deveras? Progredimos, em verdade, nos nossos conhecimentos?
Não progredimos: nós não sabemos nada mais, essencialmente, sobre o silencioso centro das coisas. Valeu então o progredirmos porque os progressos da ciência nos são úteis? Úteis como, e úteis em quê? Porque aumentaram o nosso conforto, a nossa felicidade? Julgais com verdadeira sinceridade que somos mais felizes do que os gregos, que a nossa vida tem mais conforto e alegria e beleza do que a deles? Não o julgais, bem o sabemos. Em que progredimos portanto?
Transportamo-nos mais depressa dum ponto ao outro. Trocamos palavras mais rapidamente através da distância. Vestem-nos tecidos vindos de muito mais longe. Mas nem um grão mais de felicidade veio ter connosco. Nem uma gota mais de ciência refresca a nossa fronte. Se olharmos para o fundo do que sabemos, do que temos, do que somos, vemos que, perante o mundo e a vida, a nossa visão não é mais lúcida nem mais calma, que não somos felizes, que o mundo da morte pesa sobre nós como decreto, que os laços da sensualidade riscam-nos o corpo como outrora.
Porque este aumento de conhecimento, este acréscimo de transposições podia ao menos ter aumentado o valor do indivíduo, ter feito cada um per si, mais valor do que nos gregos era. Se houve mudança, foi para pior. Os nossos dominadores não podem dormir, tão complexa é a vida, em tanta coisa tropeçam, mesmo dentro de si próprios. Os nossos artistas criam arte ínfima; há muitos mais do que havia antigamente, mas que obras criaram eles que se igualem às antigas? Tudo está confuso e perplexo em nossa roda.
Somos mais complexos, não porque tenhamos mais dentro de nós, porque o eterno pouco que temos, têmo-lo confusamente. Confusos é tudo o que somos. Perdemos a visão lúcida do mundo e a interior visão lúcida de nós mesmos. Enfebrecemos e envelhecemos. O que há de novo em nós, sobre o que a Grécia tinha, é a velhice. É a velhice, com a sua maior experiência, e o seu menor poder em utilizá-la; a velhice confusa e saudosa; a velhice faladora, analisadora de si, das suas recordações, dos seus sentimentos, como compensação de não poder mexer-se bem, de não poder agir nitidamente.
Não nos libertámos nada, de modo nenhum. O nosso medo fez-nos continuar a criar novos deuses, a que a nossa sobreposição de valores dá outros nomes do que deuses. A tirania absurda dos nomes de rei e de nobre não tirou as mãos de cima das nossas almas. Continuamos escravos de preconceitos, medrosos dos ridículos, incapazes de criar novos métodos e novas visões. No fundo tudo é o mesmo salvo, que a tristeza dói mais e a incerteza cresce. Porque, no âmago de nós, qualquer coisa como uma consciência nos acusa de nada termos feito, de nada termos substituído ao que perdemos. Gememos alto, como velhos que padecem. E em gemidos, e imitações instantâneas, e começos abandonados de acção, os nossos pensamentos se cansam, os nossos ideais se evolam, a nossa vida se assombra e se relaxa.
Os que entre nós julgam que se revoltam, apenas põem a canga ao contrário. Uns dizem-se anarquistas e pesa-lhes nos pés a grilheta do sentimento humanitário que os cristãos trouxeram. Outros gritam contra o rei, outros contra os ricos, outros contra (...). Mas o que grita contra os reis é por causa do poder que os reis têm, o que grita contra os ricos é por (...) A ânsia de ser livre e de ser escravo muda-os como um (...).
As leis, mesmo superficiais, das coisas continuam desconhecidas. Qual de nós talhará hoje com mais lógica, com mais utilidade, com mais segurança, uma regra de vida para si ou para os outros? Todos sabem o que não querem, sem saber o que querem. E mesmo o que não querem, nem sabem porque o não querem, nem (...). Os nossos actos e os nossos pensamentos deixaram de ser simples; mas não passaram a ser complexos. Passaram a ser confusos, a ser perplexos, ficaram esboços de gestos, pensamentos abandonados. Ninguém tem energia para seguir uma ideia ou ir para um combate. Os nossos propósitos viram como cataventos, As nossas ideias passam como folhas secas. Os nossos próprios vícios são tristes e frágeis. Não nascemos de um excesso quente de vida mas de uma febre, de um desassossego que sabe que a vida não basta, mas nem concebe o que lhe bastaria.
Creio nos Deuses como numa verdade e numa salvação. A sua presença adoça e simplifica. Nada lógico me leva a preferir-lhes qualquer outro deus, mais antigo ou mais recente. Ver as fontes e os bosques habitados realmente por entes reais de outra espécie não me parece mais absurdo do que acreditar que tudo isto derivou do nada, que Deus é a essência disto tudo. E eu tive a felicidade de tal nascer que naturalmente sinto a presença de entes reais nos bosques e nas fontes, que, sem preconceitos clássicos, Neptuno é para mim uma personalidade real, Vénus um ente verdadeiro e Júpiter o pai terrível e existente dos calmos deuses todos.
Nada me interpreta a natureza melhor, nem me faz amá-la mais. A presença de uma nereida alegra-me quando me encontro ao lado de uma fonte. E é grata companhia a dos silêncios quando atravesso, humanamente sozinho, o sossego sóbrio dos bosques frescos.
Os amores dos deuses, a sua humanidade afastada não me dói nem me repugna. Repugna-me a morte de um Deus, Cristo na cruz, vítima de seu próprio pai numa religião que pretende ser enternecida.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 247.1ª versão inc.: Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação . Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.