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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[1] A maneira de investigar um caso destes…

A maneira de investigar um caso destes é, começou Quaresma, por três estádios de raciocínio. O primeiro é determinar se de facto houve crime. O segundo é, determinado isso positivamente, determinar como, quando e por que o crime foi praticado. O terceiro é, por meio de elementos colhidos no decurso desses dois estádios de investigação, e sobretudo do segundo, determinar quem praticou o crime.

O raciocínio, ou mais latamente a inteligência, trabalha sobre sensações, dados fornecidos pelos sentidos, nossos ou alheios, a que juridicamente se chama testemunho. Quando, uma vez, o raciocínio trabalha sobre esses dados, pesando o que vale o testemunho, comparando uns com os outros, e, quando isso seja possível, por uns dados ir obtendo outros até ali desconhecidos, chegamos à posse do que chamamos «factos». Ao raciocínio que, trabalhando sobre os dados dos sentidos, deles extrai os factos, podemos chamar o raciocínio concreto.

Quando os dados procedem de testemunhos verificadamente seguros; quando comparados entre si não há entre eles contradição; quando, ou em si mesmos, ou com outros a cuja descoberta conduzem, são suficientemente abundantes para que os factos resultantes formem um conjunto coerente, harmónico e lógico, que nos permita indubitavelmente verificar qual foi a sua natureza, causa e fins, o acontecimento de que esses factos são os pormenores, então a investigação está concluída e basta o raciocínio para a concluir.

Raras vezes, porém, e em raros casos isto acontece, desde que o acontecimento não seja simples, isto é, formado por um pequeno número de pormenores, e estes facilmente verificáveis. Desde que o caso é mais complexo e obscuro temos que lutar com as dificuldades da insegurança dos testemunhos, ... da escassez de dados, o que torna difícil que entre si se comparem, e da falta de relação entre eles, o que torna difícil que através deles se descubram outros ainda ocultos. Ora, em casos de crime, os dados tendem a ser duvidosos, escassos, mal relacionados. Quem comete um crime, salvo se for um crime brusco, de paixão ou loucura, procura deixar o menor número possível de pistas... Daí a escassez de dados, e, em virtude dessa escassez, a falta de relação entre eles, pois entre o que é em pequeno número, as relações têm necessariamente de ser em pequeno número também. Finalmente, em caso de crime, tendem a abundar as razões para haver testemunhos duvidosos. O carácter secreto do crime contribui para [que] o que dele se observa seja imperfeitamente observado; o carácter interessante do crime tende a produzir testemunhos de natureza involuntariamente conjectural, pelos elementos e motivos que sugere...

É nesta altura, que, como último recurso lógico, temos que apelar para o raciocínio abstracto. O raciocínio abstracto emprega um ou mais de três processos — o processo psicológico, o processo hipotético e o processo histórico.

O processo psicológico é um simples desenvolvimento da acção do raciocínio concreto — consiste em aprofundar a analogia dos dados, não para se saber qual foi a natureza do acontecimento, mas qual foi o estado mental que produziu, ou os estados mentais que produziram esse acontecimento. Certa testemunha diz que certo facto se deu às quatro horas da tarde; outra diz que se deu às quatro horas e meia. O raciocínio concreto procura determinar a qual dessas horas se deu o acontecimento, ou mais profundamente, a que horas se deu, pois pode acontecer não ter sido a nenhuma daquelas. O raciocínio abstracto procura, sabido que uma ou ambas as testemunhas estão erradas, saber por que é que errou ou erraram. O caso pode não ter importância, e daí, pode tê-la.

O processo hipotético consiste em, baseando-nos nos poucos factos, ou até dados, que temos, formular uma hipótese do que poderia ter sucedido. Se a comparação de factos ou dados, ou a ausência de novos factos que necessariamente existiram se a hipótese correspondesse à realidade, dão a hipótese por insustentável, então formula-se uma outra hipótese, guiando-nos, sendo possível, pelos lapsos manifestos da primeira; e assim sucessivamente, até chegarmos a uma hipótese que explique os factos conhecidos, e evoque factos verificáveis por conhecer, isto até termos de desistir, por nenhuma das hipóteses que formulamos ser sustentável. Este processo parece mais imaginativo que intelectual, e antes pertencente à natureza do adivinhar que do investigar. Não é bem assim. O produto da imaginação está, por natureza, desapropriado na realidade; o produto da especulação hipotética está essencialmente apropriado nela. No primeiro caso a mente trabalha sem limites (ou sem limites estranhos à própria imaginação e à harmonia e coerência dos seus produtos em si mesmos); no segundo caso, trabalha com o limite dos dados ou factos, poucos que sejam, que lhes servem de fundamento. É este aliás um processo de investigação empregado frequentemente em ciência. Nas coisas, por natureza mais exactas, temos, desde que nos faltem elementos para a solução científica, que adoptar esse processo. Se tivermos duas equações com três incógnitas, não poderemos resolvê-las algebricamente — a não abdicarmos teremos que proceder por hipóteses, indo ao encontro da solução, como em todo o processo hipotético, por aproximações.

O processo histórico é análogo ao hipotético, salvo que se serve de exemplos passados, em vez de exemplos conjecturais. Pode dar-se a circunstância de determinado acontecimento ter tais semelhanças com outro acontecimento da mesma ordem, de que há notícias históricas, que à luz do nosso conhecimento do anterior podemos formular, para a explicação do posterior, uma hipótese conjectural sim, como todas as hipóteses, mas não imaginativa. Isto não quer dizer que o processo histórico valha, por si e em si, mais que o hipotético. Um e outro são aproveitáveis e falíveis. O processo histórico parece ser de simples erudição, mas não é bem assim. O processo histórico exige, é claro, o conhecimento da história dos assuntos com os quais se compara aquele que se investiga, exactamente como o processo hipotético exige imaginação. Mas a simples erudição histórica não importa tanto como a maneira de a usar; assim como a simples imaginação importa menos que a maneira de a conduzir. É mister que vamos buscar um exemplo que tenha realmente analogia com o caso que investigamos, e essa analogia nem sempre é imediatamente visual, nem sempre nos pormenores, nem sempre nas pessoas; é às vezes nas causas ocultas, nos intuitos a decifrar, porque ela existe, e o importante é saber vê-la, através das diferenças, pois forçosamente estas existirão entre os dois casos.

s.d.

Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986

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«O Caso Vargas». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976