[Cartas a João Gaspar Simões - 30 Set. 1929]
30 de Setembro de 1929.
Meu querido Camarada:
Vai à máquina porque assim a letra é clara e a resposta mais livre dos empecilhos da escrita...
...E, antes de responder à sua carta de 26, devo dizer que me não esqueci da carta, que em tempos lhe prometera, com as observações mais minuciosas sobre aquele artigo dos Temas com que honrou a minha existência. Esta existência tem estado reduzida a uma miserável contemplação dos desvairos do Sr. Engenheiro Álvaro de Campos; passado este incidente metafísico, terei, suponho, alma sobrante para falar por escrito. Não marco data, porque as datas são ficções do tempo; marco, porém, promessa. Não posso fazer mais por enquanto.
E agora respondo à sua carta. Estou disposto, do coração, a apoiar o vosso intuito de publicar as obras de Mário de Sá-Carneiro. Entendo, por mim, e seguindo aquele mesmo critério que expus na nota bibliográfica sobre ele, que esse conjunto das obras dele deve ser formado por: (1) Dispersão, (2) Confissão de Lúcio, (3) Céu em Fogo, (4) Indícios de Ouro, inéditos ainda em conjunto. Elimino o volume Princípio pela simples razão de que não presta, e o mesmo critério me leva a excluir a peça Amizade, que o precedeu, e que nunca li, por imposição do próprio Mário de Sá-Carneiro.
Creio, pois, que a edição das obras completas do Mário deverá ser feita em um único volume, por assinatura antecipada (mediante circulares a nomes escolhidos) e em edição limitada rigorosamente ao resultado dessas circulares. Esclareço mais... Convém-‑lhes, em todos os sentidos (incluindo nitidamente o financeiro) o fixarem-se de antemão sobre o número de exemplares que hão-de tirar. Fazem circulares, pedindo, simplesmente, a subscrição à edição, e indicando o pagamento contra a entrega do livro. Não peçam pagamento antecipado. Se puderem preçar o livro em 30 escudos, façam-no; não o façam passar de 50. Devem, com isso, e orientando devidamente a distribuição de circulares, obter entre 300 a 500 compradores. Não façam desconto às livrarias; estas que assinem pelo mesmo preço, e vendam depois ao preço que quiserem.
A propriedade das obras de Mário de Sá-Carneiro, naturalmente, é do pai, o coronel Carlos de Sá Carneiro, que não conheço pessoalmente, nem sei se está em Lisboa, mas que não creio se oponha, de qualquer modo ou em qualquer sentido, à publicação que tencionam fazer. Nem creio que se oporá – como, juridicamente, se poderia opor – a qualquer orientação que eu pudesse dar à publicação das obras do filho, que mais que uma vez me entregou o destino futuro dessas obras, mas, como é de ver, ou verbalmente, ou em uma ou outra carta, e sempre sem valor legal .
Quanto ao prefácio, ou estudo preliminar, que esperam de mim, tudo depende do tempo, que eu teria para o fazer. Na falta de tempo, bastaria (talvez com um breve acréscimo) aquele mesmo estudo, ou nota, com que abri o n.º 2 da Athena. Diz tudo, e, por isso mesmo, dispensa dizer mais.
Tenho, felizmente, o último retrato, que é o espiritualmente verdadeiro, do Autor. É um retrato pequeno, tipo bilhete de identidade, mas susceptível de ser ampliado e reproduzido depois de acordo com essa ampliação. O retrato, de que falo, e de que digo que é o espiritualmente verdadeiro, não dá o Sá-Carneiro como usualmente era, mas um Sá-Carneiro torturado (o próprio olhar o diz), um Sá-Carneiro emagrecido e final, que tem mais verdade que os retratos mais vulgares que ele tinha tirado nas fotografias do grande costume. E é isso mesmo que dá a essa fotografia casual o valor que casual muitas vezes usurpa ao autêntico – a fixação, por uma imposição súbita do Destino, do aspecto em que qualquer alma se revela.
Peço que me desculpe a demora de uns dias em responder-lhe, e a incoerência da própria resposta. Tenho estado sujeito, estes últimos dias, a tempestades mentais, que conto aproveitar literariamente, mas que, enquanto se não aproveitam, duram.
Se, em virtude dos incidentes atmosféricos da alma, a que acima aludo, esta carta estiver falha em informações, ou em pormenores da resposta que lhe estou querendo dar, peço que não hesite em me dizer em que pontos falta que toque, para que efectivamente lhe resresponda.
E creia sempre na consideração e no afecto do camarada amigo e grato.
30/IX/1929.
Fernando Pessoa.
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).
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