[Cartas a João Gaspar Simões - 10 Jan. 1930]
10 de Janeiro de 1930.
Meu querido Camarada:
Não sei bem qual o género ou tipo de cimento armado em que deve ser construída a desculpa que tenho a apresentar-lhe. Esta carta responde à sua de 8 de Dezembro. Ora não há cimento armado que arcaboice já qualquer desculpa. Respondo, e parece impossível...
Orientada a publicação das obras completas do Sá-Carneiro no sentido de serem em quatro volumes, convém espaçar a publicação de modo a sair, ou um volume por trimestre, ficando a publicação concluída no ano corrente, ou um volume cada quatro meses, ficando concluída no princípio do ano que vem. Isto não tem grande importância, mas há mais lógica temporal na primeira hipótese.
A ordem dos volumes, também a conhecemos e está certa assim: (1) Poemas, (2) Confissão de Lúcio, (3 e 4) Céu em Fogo. Era minha ideia de que não conviesse antepor a qualquer volume prefácio ou nota de qualquer espécie. Concedo, porém, que um apontamento breve, como o é o que escrevi na Athena, não prejudique, visto que é tão breve, e satisfaça os que estranhassem que as obras se publicassem sem advertência de qualquer espécie. Quanto à nota biobibliográfica, basta que às não muitas linhas do meu estudo se ajuntem as dez ou doze, em tipo escondido, que contenham as datas de nascimento e morte, o apontamento dos livros publicados, e mais nada. Felizmente, em todo o sentido, de todos os sentidos, o Sá-Carneiro não teve biografia: teve só génio. O que disse foi o que viveu.
Quanto a preço, não creio que seja aceitável, em sentido nenhum, que se estabeleça distinção entre os volumes em prosa e os em verso. Nem, para uma edição que se vai fazer fechadamente, convém preço abaixo de 30$00 por volume. Crê que haverá dificuldade em que se estabeleça este preço para a generalidade dos volumes?
Claro está que o primeiro volume deverá vir acompanhado do retrato. Tenho o último retrato – o tirado em Paris; é de um Sá-Carneiro emagrecido e cheio de tortura visível. É o verdadeiro retrato. Infelizmente, é pequeno – um retrato tipo passaporte –, mas terei maneira, aqui mesmo, de realizar a ampliação condigna, pela qual se forme a gravura. O formato do livro do Adolfo Casais Monteiro estaria bem para os do Sá‑Carneiro, entendendo-se, porém, que qualquer dos volumes do Sá-Carneiro seria mais extenso. É, pois, ao formato só que me refiro como muitíssimo bem.
Agora o caso da maneira de assinar ou subscrever... É assunto que, há pouco tempo, tive que estudar para a hipótese de fazer, eu, uma tradução integral das obras (das autênticas, bem entendido) de Shakespeare. Cheguei à seguinte conclusão: (1) envia-se primeiro uma circular, convenientemente redigida, apresentando, com o espírito publicitário apropriado ao assunto, o plano da publicação; (2) não se pede dinheiro antecipado (ninguém o dará), mas se pede somente que se devolva um talão de compromisso de assinatura, para o pagamento de cada volume contra reembolso postal; (3) faz-se uma tiragem um pouco acima do número de subscritores, pois, embora haja que contar com a falta de alguns dos subscritores, eles serão substituídos, e até levemente excedidos, por aquele número de criaturas que não é susceptível de interesse fora da visão nítida e objectiva do volume; (4) não se faz desconto ou preço especial aos livreiros (isto é um ponto fundamental das edições reservadas, que os livreiros tomam ao mesmo preço que os particulares, e venderão depois ao preço que quiserem); (5) a experiência relativamente ao primeiro volume das obras, ou série de publicações, orientará quanto ao decurso futuro da edição.
O caso das obras completas do Sá-Carneiro diverge, em certos pontos manifestos, do caso da tradução da obra de Shakespeare. Escuso de lhe dizer quais são esses pontos. Mas o que acima expus encerra a matéria fundamental neste caso das edições reservadas. Peço, pois, que meditem essa filosofia do livro e, se em algum ponto estiver pouco lúcida, me digam onde, para que eu esclareça.
Durante os dias, que estão entre hoje e o fim do presente mês, mandar-lhes-ei a redacção definitiva da nota da Athena, a pequena nota biobibliográfíca, que lhe deve ser apensa, e o texto completo dos Indícios de Ouro. Diz-me que tem aí a Dispersão; excuso, pois, de passar a limpo o texto desses poemas. O volume de poemas, aliás, compor-se-ia tão-somente da Dispersão e dos Indícios de Ouro. Hesito em se deveria ou não ser incluída a Manucure, ou, sendo incluída na obra, se deveria ser incluída no volume dos poemas, ou no fim da Confissão de Lúcio. Ainda farei por pensar nisso, e dizer o que saiu de o pensar.
Logo que me digam se estão de acordo com estas várias considerações, redijo, se quiserem, mas realmente sem demora, a circular a dirigir aos subscritores possíveis.
Um ponto acessório... Como o Sá-Carneiro escrevia em ortografia moderna, isto é, na ortografia denominada «oficial», e vocês dela usam igualmente, poderiam rever aí as provas, de preferência a revê-las eu, pois iriam revendo quanto ao sentido e quanto à grafia paralelamente. Se editasse eu as obras do Sá‑Carneiro, subordiná-las-ia (aliás, por impulso próprio e porventura abusivo) à ortografia de que uso. Mas, no caso presente, nem é mister que tal se faça, nem, até, convém que se faça.
Quando for tratar de passar a limpo, isto é, à máquina, os Indícios de Ouro, verei qual o poema inédito que de lá se poderá extrair, e enviar-vo-lo-ei.
E isto, agora, traz-me ao assunto da minha colaboração na Presença. A mesma demora, que incidiu sobre esta carta, afectou a remessa dessa colaboração. Conto poder enviar qualquer coisa em o espaço de poucos dias. Enviarei duas composições – uma de mim eu, outra do á lvaro de Campos.
Respondo agora à sua pergunta sobre o publicarem na Presença ou em separata algumas das minhas antigas produções. Podem vocês dispor como quiserem das duas Odes e do Opiário do Álvaro de Campos e da minha Chuva Oblíqua – isto pelo que diz respeito a inserções no Orpheu. O Marinheiro está sujeito a emendas: peço que, por enquanto, se abstenham de pensar nele. Se quiserem, poderei, feitas as emendas, dizer quais são: ficará então ao vosso dispor, como o estão as composições a que, como tais, acima me refiro.
Creio ter respondido à sua carta. Se fui omisso em qualquer ponto, peço que mo indique, para que repare a omissão.
E creia-me sempre, com o maior apreço e a maior simpatia,
seu muito dedicado e grato,
Fernando Pessoa.
P.S. – Recebi, de facto, o livro do Casais Monteiro, a quem escreverei amanhã ou domingo. Vale.
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).
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