PREFÁCIO às «Odes»
PREFÁCIO às «Odes»
O estudo da literatura italiana, de esforço clássico, não menos me escorçoou da ideia de que a esse país pudesse ser dado continuar a obra interrompida da Grécia. Na França, quem mais parecia ter a alma de acordo com o espírito das épocas pagãs, esse, Théophile Gautier, disse, uma vez, que compararam ao de Homero o seu semblante - «não, é de um Anacreonte triste». Proferira com dizer isto, melhor que quanto eu posso fazer escrevendo, a sentença anulatória da possibilidade de o considerarmos um clássico, e de poder haver em França um reatamento de alma com a Grécia perdida. Na própria Grécia contemporânea, nada que surja de indicador de que gira nas veias dos modernos helenos o calor da beleza de outrora. Só em Inglaterra, num Matthew Arnold, aponta e se esboça um conceito seguro de alma antiga. Mas o sentimento excessivo da vida moderna consegue obnubilar a visão essencial do poeta. Só num homem nitidamente eu vi qualquer [cousa] de, não já culturalmente, mas de intimamente, ligado ao espírito helénico. Foi em Eugénio de Castro. Mau grado o molho de moderno e o lixo de católico e medieval que ensopa e entulha a sua visão essencialmente pagã, qualquer coisa há nele que o aproxima dum crente verdadeiro nos deuses, dum homem cuja visão da Natureza vem coada através do estado de alma de que a crença nos deuses antigos e insultados é a legítima escultura em expressão anímica.
Porque aquela atitude a que eu chamo pagã é de uma dificuldade quase insuperável para obter, Não basta afirmar que se crê no paganismo (o que geralmente é falso), nem basta que se sinta profundamente e intensamente a beleza duma estátua grega, ou por intuição se compreenda o sabor e o jeito da vida antiga. Tudo isso pode dar um resultado minimamente pagão na realidade.
Primeiro, a crença nos deuses é uma crença especial, que só quem verdadeiramente a tem, hoje, verdadeiramente a compreende. Não há intuição que sirva para entrar no espírito dessas épocas idas. Nada em nós hoje tem o poder de ter os métodos espirituais de compreender o paganismo. A crença nos deuses é uma fé duma espécie inteiramente diferente da fé cristã. Não é outro grau de fé: é outra espécie inteiramente. Ao contrário do que se julga, não é uma fé menos intensa; a seu modo, é-o mais. É uma fé que nos cinja de mais perto, que a todo o momento temos presente, porque os deuses e as presenças quase divinas habitam todas as coisas visivelmente, não se escondem por detrás delas. A fé do pagão é outra crença, outra moral e outra visão, que ninguém que tenha sido sequer educado num cristianismo tíbio pode chegar a conceber. Na fé pagã não há entrega do indivíduo, não há moral, não há sentimento moral propriamente dito, que perturbe o puro sentimento da fé. Na moral pagã não há a preocupação do valor da vida que os cristãos ensinaram. A ideia vulgar de que o paganismo é uma religião cheia de vida e de alegria é falsa. O paganismo é cheio de calma e de (...). O cristianismo é mais humano que o paganismo. A superioridade do paganismo está nisso.
Depois, sentir intensamente uma estátua grega é a melhor demonstração de que não se percebe a arte grega. Sentir intensamente a beleza da arte grega é não compreender o que é a arte grega. A arte grega não é para se sentir intensamente. É puramente inteligente e (...). O elemento a que hoje chamam dionisíaco da arte grega é um elemento inferior, é o que está, dominado e dirigido, dentro da arte «apolínea».
Falo nestas coisas seguramente porque nasci acreditando nos deuses, criei-me nessa crença, e, querendo eles, nessa crença morrerei. Sei o que é o sentimento pagão. Só me pesa não poder explicar realmente o quão absolutamente e incompreensivelmente diverso ele é de todos os nossos sentimentos. Mesmo a nossa calma, e o vago estoicismo que entre nós alguns têm, não são coisas que parecem com a calma antiga e o estoicismo grego.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
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