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Fernando Pessoa

O INTERREGNO. - Segunda Justificação

O INTERREGNO. - Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal.

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SEGUNDA JUSTIFICAÇÃO DA DITADURA MILITAR

Alem de não ter vida institucional legítima, não pode Portugal, também, ter vida constitucional alguma.

A palavra "constituição" pode receber dois sentidos: (1) simples forma constituída de governo, seja esse governo embora uma monarquia absoluta; (2) forma de governo em imitação do espírito da constituição inglesa. O primeiro é o sentido abstracto, o segundo o sentido histórico, da palavra. Portugal presente não pode ter constituição, no primeiro sentido da palavra, porque, como já se disse, não pode ter regime político, e a constituição, neste sentido, é somente a definição do regime. E Portugal presente não pode nem deve ter constituição, no segundo sentido da palavra, pela razão mais forte ainda, porém mais complexa, que se vai expor.

Como na Europa semibárbara — à parte certas repúblicas, mais ou menos do género, porém não da espécie, das cidades-estados dos antigos — não havia outro sistema geral de governo senão a monarquia absoluta, é claro que não podia haver despotismo ou tirania senão através desse sistema. Ora o espírito humano, como é essencialmente confuso e, por isso, simplista, não distingue habitualmente o particular do geral. Assim, mais ou menos claramente se formou a ideia de que despotismo e absolutismo eram a mesma coisa. Ainda hoje há quem confunda a significação dos dois termos. Os factos, porém, olham para outro lado. Todo o homem, Ou grupo de homens, que manda, tende, em virtude do egoísmo natural da alma humana, a abusar desse mando. Só não abusa se, ou quando sente que não pode abusar, ou que perderá mais abusando do que não abusando.

Mas há só uma coisa que faz sentir ao governante que não pode abusar: é a presença sensível, quase corpórea, de uma opinião pública directa, imediata, espontânea, coesiva, orgânica, que todos os povos sãos possuem em virtude do instinto social que os torna povos, e cuja pressão oculta os seus governantes sentem sem que essa opinião pública tenha sequer que falar, e muito menos que delegar ou eleger quem por ela obre ou fale. Por isso, disse Hume, e disse bem, que não há verdadeiro governo, ainda o mais autocrático, que se não apoie na opinião pública.

Ora, pensando, por uma parte e por erro, que a monarquia absoluta era essencialmente má, e sentindo, por outra parte e com metade de razão, que a opinião pública é a essência de toda a vida governativa, foi o espírito europeu levado inevitavelmente a buscar uma fórmula pela qual essa opinião pública se coordenasse estruturalmente, se constituísse em órgão limitador ou substituidor do poder régio. Confusamente, incoerentemente, se esboçaram, desde a mesma Idade Média, doutrinas norteadas por este fito: umas eram derivadas do exemplo, em geral treslido, das cidades-estados dos antigos, outras surgiram espontaneamente da especulação medieval, muito mais espaçosa do que se supõe nesta matéria; e a algumas delas encorajou a Igreja, a quem convinha disseminar doutrinas antimonárquicas nas universidades, para hostilizar o poder dos reis, frequentemente em conflito com o dela.

Estes fantasmas de doutrina tomaram subitamente corpo, como seria de supor, no primeiro verdadeiro embate entre a monarquia absoluta e qualquer força que incarnasse definidamente esse impulso adverso. Deu-se o caso em Inglaterra, no conflito, em grande parte nacional e especial, entre a monarquia dos Stuarts, conscientemente "de direito divino", e a oposição a ela, que assumiu episodicamente, e em contrário do sentimento da maioria, a forma republicana. Nasceu por fim, depois de pesados anos de perturbações, o chamado constitucionalismo, fórmula de equilíbrio espontâneo, provinda de antigas tradições nacionais em que o fermento de todas as doutrinas anti-monárquicas diversamente se infiltrava. O principal teorista do sistema, tal qual finalmente veio a aparecer, foi Locke, em seu Ensaio sobre o Governo Civil.

Ora o mesmo simplismo do espírito humano, que o leva a confundir o particular e o geral na teoria, o conduz a os não distinguir na prática. Assim, sem considerar se a solução política inglesa não seria particularmente inglesa, e portanto inaplicável a outros

povos, em outras circunstâncias de passado e de presente, os pensadores políticos europeus erigiram em dogma a constituição de Inglaterra. A fórmula constitucional inglesa passou a ser, para eles, uma espécie de descoberta científica, não só universalmente verdadeira, como o são os dados da ciência, mas também absolutamente perfeita, como o são as expressões das leis naturais. E, como o povo inglês rapidamente se distanciou, no gozo de verdadeira liberdade e de uma vida social superior, de todos os outros povos de Europa, viram, aparentemente, a prática a confirmar a teoria. Daí a intoxicação constitucional, que haveria de produzir, numa amplidão doutrinária exaltada, a Revolução Francesa, pela qual as doutrinas, já metafísicas, do constitucionalismo inglês se derramaram depois por todo o mundo.

A ninguém ocorreu, parece, que a liberdade, em qualquer povo, é a simples expressão da sua força espontaneamente coesiva em resistir a qualquer tirania, nem que a liberdade e a superioridade social inglesas provinham, não de uma fórmula que é uma abstracção, mas da saúde social, da forte opinião pública directa, que estavam por trás dessa fórmula e lhe davam a vida real, como a haveriam dado, no mesmo sentido, a qualquer outra.

Assim, de uma intuição central justa, embrulhada em erros e por eles sufocada, nasceu em Europa, e alastrou a todo o mundo civilizado, a superstição constitucional. Consiste ela em crer que a fórmula constitucional inglesa é universal, sendo pois aplicável a qualquer povo civilizado, em quaisquer circunstâncias; e que é perfeita, dado que seja a verdadeira fórmula de traduzir para uma norma política aquilo a que se chama opinião pública.

Ambas as teses são demonstravelmente erróneas. A primeira a todos o deve parecer, ainda que por simples intuição. É evidente, ou deveria sê-lo, que o regime que particularmente convém a um povo representa uma adaptação às particularidades desse povo, e deve ser, portanto, inadaptável em princípio às particularidades, forçosamente diferentes, de outro povo qualquer. À parte esta razão, porém, há uma outra, de mais peso. Só pode ser universalmente aplicável o que é universalmente verdadeiro, isto é, um facto científico. Ora em matéria social não há factos científicos. A única coisa certa em "ciência social", é que não há ciência social. Desconhecemos por completo o que seja una sociedade; não sabemos como as sociedades se formam, nem como se mantém nem como declinam. Não há uma única lei social até hoje descoberta; há só teorias e especulações, que, por definição, não são ciência. E onde não há ciência não há universalidade. O constitucionalismo inglês, ou outra teoria social qualquer, é portanto inaplicável à generalidade dos povos, convindo só, porventura, ao povo onde apareceu e onde, portanto, é em certo modo natural. O que resta saber porém, é se, no próprio povo inglês, o constitucionalismo inglês dá bom resultado. Se não der, as duas teses ruem juntas, pois o que é mau onde é natural — embora viável por ser natural — será duas vezes mau onde for artificial, pois aí nem viável será. Leva-nos isto, pois, ao exame da segunda crença da superstição constitucional — a de que o constitucionalismo inglês realmente representa a projecção política da opinião pública.

Essa crença, vai desmenti-la por nós, e melhor que o faríamos nós, um inglês moderno, homem culto e experimentado, político por hereditariedade e por vocação. Diz assim Lord Hugh Cecil, filho do Marquês de Salisbury, a p. 235 e seguintes do seu livro intitulado Conservantismo:

"Torna-se altamente interessante e importante inquirir onde está o centro do poder que domina, em última análise, a Casa dos Comuns e a autoridade ilimitada que, pela constituição, essa Casa exerce. É interessante e importante, porém não é muito fácil. Pode dizer-se que o poder está no Gabinete, isto é, nos quinze ou vinte homens predominantes do partido em maioria.

"Mas isso nem sempre será verdade. Pode às vezes haver discordâncias no Gabinete. Qual é a força que então determina que a decisão seja dada num sentido ou noutro? Ou, ainda aparecerá às vezes no Gabinete uma questão para decidir e trará já uma solução tão fortemente apoiada pelo partido, que o Gabinete se veja constrangido a adoptar essa solução. Onde está o poder a que até o Gabinete tem que obedecer? A melhor resposta é que a autoridade suprema num partido é em geral exercitada pelos mais activos e enérgicos dos organizadores partidários sob o comando de um ou mais dos principais chefes do partido.

Às vezes o chefe nominal do partido está entre estes homens; outras vezes não esta. Mas eles derivam a sua força, não só da sua situação pessoal, mas de que, de um modo ou de outro, influem no que se pode chamar a Guarda Pretoriana do Partido, isto é, os seus elementos mais activos e ardentes. Se isto é assim, temos graves razões de receio. A Casa dos Comuns nomeia o Executivo e tem domínio absoluto sobre a legislação. O partido em maioria na Casa dos Comuns domina absolutamente a Casa dos Comuns. Esse partido é, por sua vez, dominado pelos seus elementos mais ardentes e enérgicos, sob o comando dos políticos a quem esses são mais afectos. Quer isto dizer que a suprema autoridade do Estado está nas mãos de partidários extremos e nas mãos dos estadistas que mais admirados são por esses partidários extremos. É quase impossível conceber uma forma menos satisfatória de governo. Isto, contudo, é que é a realidade. A aparência é que a Casa dos Comuns representa o povo. Mas, de facto, o povo nem tem a voz dominante na escolha da Casa dos Comuns, nem domínio real sobre ela, uma vez escolhida. O Povo tem, na prática, só a liberdade de escolher entre os candidatos partidários que são submetidos à sua escolha. São os partidários ardentes — a Guarda Pretoriana — quem escolhe os candidatos; os eleitores têm somente que determinar se querem ser representados pelo nomeado dos Pretorianos Conservadores ou pelo nomeado dos Pretorianos Liberais, ou, em casos mais raros, podem escolher um candidato, não menos disciplinado, nomeado pelo Partido Laborista. Os independentes podem propor-se, e algumas vezes se propõem à eleição. Mas as eleições, nas condições modernas, são a tal ponto matéria de organização e mecanismo que é com grande desigualdade que um independente se pode bater contra os candidatos nomeados pelos partidos. O triunfo de uma candidatura independente é a coisa mais rara deste mundo. A única verdadeira influência que têm os independentes está no desejo dos chefes partidários de lhes obter os votos. Mas até isto tem na prática um alcance limitado. Há assuntos controversos sobre os quais os partidários ardentes, de um lado e de outro, sentem tão fortemente que quasi nada se importam da opinião do público não partidário. E, quando a Casa está eleita, a influência da opinião pública fica semelhantemente limitada.

"Alguma coisa se fará para obter apoio na próxima eleição geral; mas, sempre que os homens do partido do governo realmente se empenhem num assunto, correrão todos os riscos para fazer vingar a sua política. sobretudo o farão quando o assunto de que se trate envolva o crédito pessoal de um dos chefes da sua confiança. O facto formidável é que a mais alta autoridade do nosso Império imenso e único se encontra alternadamente nas mãos de dois grupos de homens veementes, intolerantes e desequilibrados."

Estas palavras têm já quinze anos, porém valem hoje como então; nada, salvo o aumento do Partido Laborista, existe de novo na situação que elas descrevem, e esse aumento não pesa senão em converter em "três" a palavra "dois" no fim do texto. E estas palavras são, não só do político experiente, por herança e vocação, que dissemos ser seu autor, mas de um homem que é ele mesmo político partidário. É um dos casos em que, contra a norma jurídica, a confissão do réu tem valia.

O réu, porém, não confessou tudo. Uma polémica recente e episódica, entre chefes liberais ingleses, trouxe à atenção pública um dos pontos da vida partidária em que ordinariamente se não reparava. Isto de que os fundos partidários são secretos, secretos os nomes dos indivíduos que frequentemente entram com grandes somas para os cofres dos partidos. Isto complica o assunto e a Guarda Pretoriana. Quem entra com grandes somas para um cofre partidário raras vezes o fará por teorismo. Fá-lo, em geral, com outro fito. E, visto que deu, fará por que se faça aquilo para que deu. O partido, ou a sua Guarda Pretoriana, fará, visto que recebeu, por merecer o que recebeu. Assim, nesta noite moral, se podem subtilmente esboçar e subtilmente se infiltrar na substância da vida política orientações inteiramente antinacionais; pois, como a este propósito se observou, não sabendo ninguém quem são os magnos financiadores dos partidos, ninguém tem a certeza que não estejam ligados a elementos estrangeiros, cuja política secretamente imponham. Nem se alegue que este estado de coisas nada tem com o constitucionalismo, propriamente dito. O constitucionalismo envolve e motiva a existência de partidos; estes partidos fazem uns aos outros uma guerra política; e a guerra política, como a guerra, assenta em duas bases — dinheiro e segredo.

É assim, pois, que opera o constitucionalismo inglês no país onde é natural, e, portanto, em certo modo orgânico; onde é antigo, e, portanto, ainda mais natural; onde mais tem sido aperfeiçoado, e, portanto, onde deve estar mais livre de erros. E, se assim é neste país, como o não será nos outros, onde não é natural, nem antigo, nem, por não ser antigo, poderia ter sofrido o que propriamente se chama um aperfeiçoamento?

Nos países onde, como em Inglaterra, existe um ideal nacional, e, em certo grau uma opinião pública espontânea — aquela opinião pública natural, orgânica, não eleitora, de que acima falamos — os malefícios essenciais do constitucionalismo são diminuídos. São, porém, diminuídos por elementos externos, e não internos, a ele. A pressão de um ideal nacional, se é forte e constante, faz-se sentir no próprio Parlamento, nos próprios partidos, pois estes existem adentro da nação; a pressão de uma opinião pública espontânea, se é forte, do mesmo modo que a sentiam os reis absolutos, assim a sentem também o Parlamento e os partidos, que recuam, como faziam os reis, ante os seus impulsos mais evidentes. Parece, por isto, que, se o parlamento e os partidos podem ser, como o eram os reis, sensíveis às manifestações directas da opinião pública, tanto faz que haja reis como Parlamento e partidos; parece que basta que haja ideal nacional, e que haja opinião pública verdadeira, pois estes se farão sentir ao Parlamento e aos partidos, e assim os compelirão ao recto caminho. Infelizmente a analogia é errónea. O rei absoluto podia (com grave risco próprio) contrariar o ideal da Nação. O rei absoluto podia (com certo risco próprio) contrariar a opinião do seu povo. Mas o rei absoluto não podia sofismar ou perverter esse ideal ou essa opinião, pois não tinha contacto interno com a opinião pública, que não representava e de quem não dependia, e o ideal nacional, enquanto activo, não se manifesta senão como uma parte da opinião pública. Os partidos, porém, como têm um ideal político distinto do ideal nacional (sem o que não seriam partidos), ora sobrepõem aquele a este, ora o infiltram neste, assim o pervertendo. Os partidos, ainda, como têm que ter a aparência de se basear na opinião pública, buscam "orientá-la" no sentido que desejam, e assim a pervertem; e, para sua própria segurança, buscam servir-se dela, em vez de a servir a ela, e assim a sofismam.

Em Portugal, porém, não há (como se disse) ideal nacional, nem há (como se dirá) opinião pública. Recebemos, assim, em sua plenitude os malefícios do constitucionalismo. Somos nós os perfeitos constitucionais. Os problemas nacionais suscitados pela presença do constitucionalismo, se são graves em qualquer outro país, são, pois, entre nós gravíssimos. Temos que dar-lhes uma solução qualquer, permanente ou provisória, mas certamente imediata.

Ora como, segundo se viu na transcrição acima feita, o mal do constitucionalismo está na sua essência, visto que é radicalmente nocivo até onde é natural, não há outro remédio para ele, onde nem seja natural, senão a sua simples eliminação. Mas, se o eliminamos, o que poremos em seu lugar? Por que norma governativa o substituiremos? Onde houvesse um regime, ou a possibilidade imediata de um regime, tentaríamos extrair da substância desse regime uma norma governativa, própria e especial. Mas onde, como em Portugal presente não há regime, nem possibilidade imediata de o haver, a única solução é, eliminando o constitucionalismo, o não substituir por coisa nenhuma, parecida ou diferente dele. Em outras palavras, há que criar, que estabelecer como coisa definida, o Estado de Transição.

Sendo o Estado de Transição, em matéria nacional, a condição de um país em que estão suspensas, por uma necessidade ou compulsão temporária, todas as actividades superiores da Nação como conjunto e elemento histórico, o certo é que não está suspensa a própria Nação, que tem que continuar a viver e, dentro dos limites que esse estado lhe impõe, a orientar-se o melhor que pode. Os governantes de um país, em um período destes, têm pois que limitar a sua acção ao mínimo, ao indispensável. Ora o mínimo, o indispensável social é a ordem pública, sem a qual as mais simples actividades sociais, individuais ou colectivas, nem sequer podem existir. Os governantes naturalmente indicados por um Estado de Transição são, pois, aqueles cuja função social seja particularmente a manutenção da ordem. Se uma nação fosse uma aldeia, bastaria a polícia; como é um nação, tem que ser a Força Armada inteira.

É esta a segunda Doutrina do Interregno, a segunda justificação da Ditadura Militar.

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2-1928

Da República (1910 - 1935). Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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1ª publ.: O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. Fernando Pessoa. Lisboa, Núcleo de Acção Nacional, 1928