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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

Ao homem extraordinário, cujos poemas, não só inéditos,

Ao homem extraordinário, cujos poemas, não só inéditos, mas também incompletos se coligem na presente edição, deve o público que porventura o leia, um interesse que, podendo ser que ele lho não dê sem esclarecimento prévio, desejo, nestas linhas de prefácio, indicar como, e porquê, merecido.

À primeira vista, a obra de Caeiro, aqui inteiramente coligida, não parece divergir, salvo em pontos secundários, das elucubrações métricas de tantos poetas nossos coevos, e um pouco anteriores, em que o principal característico de inspiração é a indisciplina e o individualismo das sensações e dos sentimentos, e o mais patente distúrbio da dicção o caso libérrimo da linguagem, que, liberta não só da rima como também do ritmo regular, se dá como seguindo o ritmo interior, a sequência desordenada das imagens que surgem no espírito.

Assim, será o americano Whitman, o belga Maeterlinck e, na nova poesia [...] o francês Jammes. Mas não há semelhança embora no mais extremo do extremo, entre Caeiro e estes.

A estes autores modernos convém aquela designação de sensacionistas, que alguns poetas do nosso Orpheu escolheram para designar-se. São pessoas que não têm outro intuito artístico, que não o de exporem as suas sensações, e isto sem mesmo aquela disciplina rudimentar que deriva do emprego das formas convencionais da literatura em verso. Não têm a disciplina duma teoria estética que transcenda os seus temperamentos, nem a duma teoria religiosa cujos lemas excedam os seus caprichos, nem a de uma doutrina filosófica que, através das suas inteligências, subordine as suas sensibilidades.

A disciplina é sempre exterior, embora nem sempre aplicada de fora. As leis do meu temperamento nunca podem constituir uma disciplina minha. Uma disciplina é um princípio regrador da vida e da obra, que a inteligência aceita como verdadeira, e a sensibilidade aceita por boa. Sem a acção sobre tanto sensibilidade como inteligência, não há disciplina: se a inteligência aceita e a sensibilidade não, há um mero diletantismo; se o inverso, há um conflito esterilizante, anarquisador. Os românticos eram cristãos da sensibilidade e pagãos do pensamento; os neoclássicos eram cristãos do pensamento e pagãos na sensibilidade. Por isso a arte de uns e de outros resultou débil e, desde nada, caduca.

A Revolução Francesa foi um renascimento do Cristianismo. O seu célebre triplo lema é o lema substancial da sensibilidade cristã. Liberdade, Igualdade, Fraternidade outros não são os ensinamentos essenciais do Evangelho jesuista.

Toda a nossa civilização é a revolta do paganismo contra o cristianismo.

Começando na filosofia (Rousseau) passou à política e daí à sensibilidade geral.

O paganismo reagiu parcialmente na Renascença, reagiu parcialmente nos séculos que lhe sucederam. Em Caeiro o paganismo reage essencial e integral sem os Deuses, é certo, mas com toda a Inteligência e a sensibilidade pagãs, a objectividade absoluta no pensamento (...).

A obra de Caeiro e mais intelectual do que sentimental. Propriamente, nem é sentimental. Nela estamos longe do ruído e do fumo da época; pertencemos à visão olímpica; fruímos, na nossa vida transitória, um reflexo da eternidade dos deuses.

s.d.

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

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1ª publ. inc.: Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.