Todos os movimentos que, adentro da nossa civilização,
Todos os movimentos que, adentro da nossa civilização, tem havido no sentido do paganismo, têm pecado pela sua origem cristã. Todos os pseudo-pagãos do nosso tempo não conseguiram uma alma pagã antes de projectarem o seu paganismo. É cristão o sentimento com que desejam o paganismo. Quando muito, pode dizer-se deles que têm uma ânsia cristã do paganismo. Em nenhum caso se pode deles dizer que têm um conceito justo do paganismo. Podem sentir altamente a beleza e a calma dos deuses; mas de que serve que o façam, se por pagã que seja, ou pretendam que seja, a sua inteligência — ou, quando muito, a sua imaginação —, a sua sensibilidade está secularmente cristianizada?
Estas considerações se aplicam a todos, sem excepção, quantos têm querido reconstruir o paganismo desde que ele morreu. Dirigem-se tanto ao esforço reconstrutor de um Matthew Arnold, como ao de um Óscar Wilde. Em Nietzsche, em que mais parecia que se devesse falar, é melhor que não falemos, tão repelentemente cristã se contorce aquela débil e doentia mentalidade.
Em todos eles, obscuramente, na mais buscadamente pagã das suas atitudes, uma sugestão cristã se insinua — a consciência do pecado, não talvez conscientemente tal, mas o mal especial, o desvio de espírito que séculos de tal concepção radicaram na alma.
Para se ser pagão não basta admirar a religião morta dos gregos ou dos romanos. Não basta que se ache beleza aos deuses, ou, mesmo, que se creia objectivamente na sua existência. Não basta que se ache consoladora a calma dos antigos, ou prática e severa a sua sabedoria. Tudo isso não é mais que uma ou outra das consequências do espírito pagão. Na sua essência o paganismo é outra coisa, que pode dispensar esses resultados e, contudo, ser mais pagã do que eles.
Não seria perdoável que houvéssemos feito estas objecções ao paganismo suposto dos modernos, se as não completássemos com uma, sumária talvez mas suficiente, consideração de quais sejam, deveras, as características essenciais do paganismo.
Como estamos todos, mais ou menos, adentro da sensibilidade e da intuição cristãs, o mais útil será que essa definição, que vamos fazer, seja feita em uma atitude de comparação com o sentimentalismo cristista.
Diremos o que é o paganismo nas três esferas em que mais naturalmente, a actividade do espírito parece dividir-se (manifestar-se). Exporemos o que é que, nas esferas da inteligência, da sensibilidade e do alvedrio (vontade) quer dizer o paganismo. Tudo o mais — tanto os deuses como as atitudes filosóficas que do paganismo emanaram — são o que ele foi em relação à época em que se manifestou, não o que, na sua essência, ele era.
Na esfera da inteligência o paganismo define-se como uma objectividade absoluta e concreta. No que objectividade absoluta, distingue-se do cristianismo, que, admitindo elementos objectivos na sua actividade intelectual, porquanto, essencialmente dualista (qualquer que seja a forma que o seu dualismo tome — ou a clássica, ou uma, como a de Kant, a cisão em razão pura e razão prática) ( . . . ).
Por outro lado, o paganismo, no que objectividade concreta, distingue-se do budismo, forma culminante da Weltanschauung da Índia. O budismo — que poucos deveras conhecem — é um objectivismo absoluto também, mas não é um objectivismo absoluto e concreto. O budista é um pagão para quem o sentido da matéria se alarga indefinidamente.
Não quer isto dizer que no paganismo não tivesse havido filósofos em quem é difícil encontrar este tipo de mentalidade.
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A sensibilidade cristã gravita em torno à ideia pecado. Não sempre conscientemente, mas de qual maneira sempre, gravita em torno a ela. Para se contestar a verdade do que afirmo, é preciso que se não veja em que várias formas se pode revelar essa ideia. Não é sempre no seu efeito simples, de receio de pecar, que ela se revela. No seu outro aspecto, o da salvação, ela é importante também.
A mentalidade cristã, constitucionalmente acostumada a encarar esta vida como prelúdio de outra e subordinada a ela, tanto como importância, como no que acção, criou, deixando-a herdada, na massa do sangue a gerações já descrentes nela, uma atitude da sensibilidade que se pode definir como um desprezo da vida no que exclusivamente vida. O cristão despreza a vida propriamente tal.
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Alberto Caeiro é mais pagão que o paganismo, porque é mais consciente da essência do que qualquer outro escritor pagão. Como o poderia ser um pagão se concebia a essência do seu psiquismo em oposição a um sistema diferente de sensibilidade, como o cristianismo é? E quando se abria o conflito entre paganismo e cristianismo, na ascensão deste último, já a entorpecida e decadente mentalidade dos povos romanos era propriamente cristã, e não pagã de modo nenhum.
O assunto mede-se bem quando se medita a tentativa de reacção de Juliano. Esse imperador quis, realmente, estabelecer o paganismo, numa época — ai dele! — em que o sentimento do paganismo já não existia, mas apenas um culto dos deuses em que a essência da superstição mais era aquela que havia de ser típica do cristismo, que a de uma espécie qualquer do genus paganismo. Nas próprias ideias de Juliano se reflecte a incapacidade do tempo para uma reconstrução do paganismo. Juliano era, propriamente, um mitraísta, o que hoje se chamaria um teosofista ou um ocultista. A sua reconstrução do paganismo baseava-se, fantasticamente, numa fusão dele com elementos orientais que a fúria mística do tempo havia tornado parte do espírito da época. E assim falhou, na verdade porque o paganismo tinha morrido, como morrem todas as coisas, salvo os Deuses e a sua inscrutável ciência atormentadora.
As considerações, que tenho feito, considero-as sobretudo aplicáveis a O Guardador de Rebanhos. A outra parte da obra de Caeiro, que não constitui senão fragmentos, tenho-a por póstuma mesmo na sua composição. Desde O Pastor Amoroso, a sensibilidade de Caeiro empana-se, a sua inteligência anuvia-se, e, embora do contacto dessa complexidade nascente com a essencial simplicidade do temperamento nasça esse estranho e original sabor que tais poemas revelam, a obra, grande embora, não é já a mesma. Por um lado, falta-lhe o equilíbrio e a lucidez absoluta que são todo o valor real da obra primitiva; por outro lado, no que conservam de rigorosamente semelhante a O Guardador de Rebanhos, não fazem senão repeti-lo, numa forma sempre superior intelectualmente, mas com um conteúdo nem sempre suficientemente novo para que justifique que esses poemas se escrevam, estando já escrito O Guardador de Rebanhos.
Dir-se-á, ainda, comparando o que Caeiro é com o que eu desenhei como sendo o espírito do pagão, que, por nítida que seja a concordância entre o génio da obra do poeta [e] a parte intelectual do paganismo, a semelhança falha um pouco no que respeita à sensibilidade, e muito quanto aos princípios pregados para constituírem categorias de acção. Mas esses, que faltam, tinha-os o paganismo por haver uma sociedade pagã; o reconstrutor moderno do paganismo pode, como Caeiro, por um alto dom dos Deuses, atingir a inteligência e a sensibilidade do pagão; não pode nunca pregar a acção pagã porque a acção é social, e não há sociedade pagã a que essa acção corresponda. E, por mais, um indivíduo de sensibilidade pagã sente-se isolado entre a nossa sociedade; à sua mentalidade de pagão se adiciona, portanto, o que provém da sua vida de isolado, por onde se vê que à nitidez, ao (...) pagãos se soma o que não pode deixar de ter um isolado pagão moderno.
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Mas eu encaro a obra de Caeiro não só pelo seu aspecto de beleza, como também pelo seu aspecto de consolação. Para o espírito que se sente exilado entre a confusão e a imperícia da vida contemporânea, há momentos em que o peso dessa diferença tão dolorosamente se acentua, que é preciso qualquer reflexo da placidez e da grandeza antigas para obstar a que advenham as piores maldades do desespero. Tenho sentido muitas vezes, e com agudeza, essa sensação de exílio entre os objectos que o Cristianismo produziu. Nunca logrei para ela remédio entre os autores da antiguidade; eles não conheceram o nosso mal de espírito, e por isso não [puderam?] escrever em relação a ele. São inocentes, mesmo os mais poluídos. Lê-los exaspera-me o mal que a vida de hoje me causa. É como uma criança que brincasse comigo, exasperando o meu mal de adulto com a sua simplicidade simples demais.
Nestas horas turvas a única fonte de consolação para a minha alma tem sido o manuscrito, que sempre me acompanha, de O Guardador de Rebanhos. Ele tem toda a simplicidade, toda a grandeza, toda a posse das coisas que os antigos tinham; mas, escrito já em oposição aos tempos modernos que o viram nascer, dá-nos já como bálsamo o que nos outros era só frescura; e onde os outros nos alegravam mal, como crianças inexpertas, este nos consola e acarinha como velhos prudentes e habituados a desculpar a vida.
Ainda que eu não pudesse sentir como belas as produções de Alberto Caeiro, eu sempre as sentiria como consoladoras. E por isso, quando não lhes devesse o tributo da minha admiração, não poderia negar-lhes o do meu reconhecimento.
Como as duas razões para amar esta obra se juntam no meu espírito, ela ergue-se para mim, pela minha inteligência como pelo meu sentimento, acima de todas as outras obras que eu haja lido, e elas incluem, creio que de mais nobre e de mais tranquilo a antiguidade nos legou, desde a inspiração matutina de Homero o ou de um Marco Aurélio (ou de um Antonino).
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 315.Prefácio a Caeiro