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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Carta a Jaime Cortesão - 22 Jan. 1913]

Lisboa, 22 de Janeiro de 1913.

Meu prezado Camarada:

Uma constitucional perturbação da vontade e uma ânsia, paralelamente paralisante, de sobre tudo dizer tudo, sem falha, falta ou fraqueza, fazem com que eu ponha em tudo que faço uma demora que acaba por me apavorar até à acção, e que comece essa acção por um pedido de desculpa de tanto ter demorado. No caso presente o que eu tencionava fazer era um ligeiro, epistolar estudo sobre a sua individualidade, agradecimento de raciocinador pela oferta, que amavelmente me fez, das suas duas plaquettes, dedicação de psicólogo ao interesse que o seu espírito me desperta e, desde que primeiro o li, me despertou, e fraco retribuir, crítico e frio, da alta e lusitana emoção que os seus versos me têm dado.

Mas, no momento actual, inteiramente trágico, da minha vida, em que sou o Atlas involuntário de um mundo de tédio, que quase fisicamente e localmente me pesa sobre os ombros, as minhas faculdades de análise tornaram-se-me uma coisa que eu sei que tenho mas que não sei onde está.

Vêm estas considerações egotistas para explicar que roce, talvez, tão flagrantemente pelo banal e pelo pouco a apreciação que segue, das suas duas poesias. Num ou noutro ponto dessa apreciação cairei — dada a impossibilidade que há em mim de querer não analisar — no impulso de esmiuçar e destecer, mas, não podendo, pelas razões já ditas, aplicar-me a esse trabalho completamente, esquivar-me-ei a ir até onde era de meu desejo ser levado.

A meu ver é o meu querido amigo (permita-me que assim o trate) o primeiro dos poetas da novíssima geração. Eu chamo, é claro, novíssima geração àquela que apareceu posteriormente à de Pascoaes, Correia d'Oliveira e Lopes-Vieira, à que é propriamente já e apenas do século vinte. Entre os poetas dessa geração creio que o meu amigo é princeps. Ao especial sentimento da Natureza que a todos é peculiar, e em que tomaram (sem o saber, é claro) o facho das mãos de Tennyson, mais alumiando-o, até a chama ser outra, de maior, na alma altíssima da nossa Raça, fazendo escuro o brilho dos ingleses europeiamente antecessores; à subtileza de subjectividade que quase todos têm, e que é o simbolismo traduzido portuguesmente para divino; — a estes dois elementos junta o meu amigo o elemento heróico que os ergue e levanta. Não quero com isto dizer que entre os outros poetas da actual corrente este elemento heróico não exista. O que digo é que em si esse elemento está em pleno equilíbrio com os outros, o que torna o seu voo lírico mais alto, mais límpido, e mais aguentadamente largo. O que com este último adjectivo adverbiado descrevo é que é, para mim, mais importante e de interesse na sua obra. A poesia só de Natureza, por alta que seja, tira o indivíduo demasiadamente de si para o deixar saber construir uma poesia um pouco extensa conexamente: o caso de Wordsworth, que criou a poesia da Natureza, e, com duas excepções, falhou toda a poesia mais do que pequena, é típico. A poesia apenas subjectiva faz com que o indivíduo se extravie de si dentro de si próprio: é, ainda mais que a da Natureza, encurtadora do fôlego espiritual. Escuso de lhe apontar o caso representativo dos simbolistas, os mais puros-subjectivos que a poesia tem tido. — Ora, consoante eu apontei num dos meus artigos n'A Águia, o que dá o especial valor à nossa poesia novíssima é que equilibra a poesia da Natureza, em alto grau inspirada, com a poesia da Alma, em grau tão alto sentida. Mas houve uma coisa que ali não disse, não de propósito, mas porque me escapou naquela primeira análise do assunto. E que há um terceiro elemento, e nesse ainda a nossa nova poesia é pecadora: é a construção, aquilo a que se pode chamar a organicidade de um poema, aquilo que nos dá, ao lê-lo, a impressão que ele é um todo vivo, um todo composto de partes, e não simplesmente partes compondo um todo. — Ora de onde vem a construção? — isto é, de que qualidades nasce?

Eu mostrei que quer a poesia subjectiva, quer a poesia objectiva dá, sendo só ou subjectiva ou objectiva, uma falta, muitas vezes de equilíbrio, e sempre de fôlego. Possuídas em grau igual estas duas formas ideativas, resulta equilíbrio com certeza, mas fôlego não resulta. É que, quer o sentimento do Exterior, por intenso e complexo que seja (e quanto mais intenso ou mais complexo pior) como o sentimento do espírito, por subtil que seja (e tanto mais quanto mais subtil), são, quanto no caso é possível, de sua natureza estáticos; e da sua combinação, como é de ver, nada resulta que não estático. — Ora construir implica esforço, quer este esforço seja consciente ou inconsciente, rápido ou demorado. À base da construção, poética ou outra, sendo pois de sua natureza um dinamismo, logo se compreende como os sentimentos estáticos que são o da Natureza (que é apenas um complexo contemplar) e o do Espírito (que é somente um subtil contemplar-se) conduzam à falência construtiva. (É de notar, naturalmente, que o carácter estático do sentimento da Natureza do da Alma é relativo; puramente estático, quedava-se sem gestos de expressão dentro de si próprio, e nunca dali resultaria arte).

Posto isto, que a construtividade poética parte de uma faculdade qualquer, dinâmica de essência, com só mais um passo atingiremos a compreensão de quais são essas faculdades. O dinamismo pode ser de três espécies, evidentemente. Ou é dinamismo do Espírito para o Mundo Externo, ou do Mundo Externo para o Espírito, ou uma síntese destes dois dinamismos especiais. Temos pois que os poetas capazes de construir têm uma de três faculdades. Ou têm aquilo a que chamarei o impulso heróico, que é o dinamismo de dentro para fora, a ânsia de dominar as coisas, de sobrepor à Natureza a individualidade própria. — Ou tem aquilo a que chamarei o impulso religioso, que é o dinamismo de fora para dentro (e que é bom não confundir com o outro sentimento religioso, que é a mais alta manifestação do sentimento da Natureza, mas a que falta o impulso, por ser de mais subjectivo, meditativo apenas), e que vem a ser ânsia, contrária à outra, de se submeter, sem se abandonar (como o místico) a um Deus — impulso de outro modo heróico também, porque essa submissão traz consigo o sentimento contrário ante a Natureza e os homens. — Ou, finalmente, têm o impulso construtivo puro, que, sempre com certo grau de consciência, ainda que inspiradamente, ajusta o interior ao exterior, o detalhe ao todo. Este, que é realmente sintético dos outros, é de espécie e origem diversa.

Os homens da Renascença — que foram, na época moderna, os grandes construtivos, tao superiores nisto aos Românticos, por maiores que fossem estes em sentir a Natureza e o Espírito — tinham um ou outro daqueles dinamismos. Os épicos de género guerreiro tinham o primeiro: é mesmo a intensidade do «dinamismo heróico» que aguenta e vivifica Os Lusíadas, e os salva de serem vítimas das pequenas faculdades puramente-críticas de Camões. Milton tem o segundo género de dinamismo. O terceiro parece-me que o encontro em Shakespeare, onde, por exemplo no caso das várias edições do Hamlet, nas constantes alterações, claramente estudadas e cautas, que, ao mesmo tempo que mais e mais deteatrizam (sic) a obra, mais a tornam ligada, e una.

Ora, para entrarmos enfim em casa, o que com grande alegria noto no meu amigo como destacando-o entre os novos poetas é a sua capacidade construtiva. O género dessa capacidade é o «dinamismo heróico». Como adiante direi, este dinamismo não está ainda em si plenamente desenvolvido.

Fica, pois, feita a descrição do que me parece ser o seu valor como poeta. Ao alto e religioso sentimento da Natureza e ao subtil sentimento do espírito que caracteriza os novos poetas, junta o meu amigo um sentimento heróico que o ergue acima deles, ainda que haja entre eles quem tenha com mais misticidade o sentimento da Natureza e (outros) com mais subtileza o sentimento do Espírito.

Passemos aos seus defeitos. Resultam da descrição feita das suas qualidades. São três. O primeiro nasce da própria natureza do dinamismo heróico. O segundo nasce da posse não plena desse dinamismo. O terceiro nasce de aplicações falsas que de vez em quando faz do seu género de dinamismo.

Vamos ao primeiro. Por vezes, o meu amigo tem tendência a embriagar-se de heroísmo: resulta daí que, de vez em quando, a sua voz é demasiado alta para o assunto ou para o trecho, as imagens demasiado heróicas para a ocasião. Nas intercalações que faz na Sinfonia da Tarde há disto. Nao é defeito muito importante, e é daqueles a que se costuma chamar «defeitos das qualidades».

O segundo defeito pode-lhe fazer mal num poema longo. Na Sinfonia da Tarde há, naquelas mesmas intercalações que já citei — no facto de as ter feito, com prejuízo da curva perfeita da poesia — uma prova desta posse incompleta da sua qualidade principal. Contra este travers é preciso mais cuidado Creio que crescerá para fora dele. É da juventude do seu impulso heróico, parece-me, e não de falha constitucional nele.

Contra o terceiro defeito é que eu mais o quereria aconselhar, com toda a franqueza e lealdade crítica que nestas linhas estou pondo. Mas a poesia recente onde o podia ter mostrado — a Esta História... — está perfeitamente livre dele, está singularmente ligada, conexa, una. É uma das poesias de amor mais perfeitas que há na língua portuguesa. — Onde este seu defeito estava patente era naqueles seus sonetos em tom de ternura que publicou n'A Águia antiga e na actual. Esses — permita-me que lhe diga — são falências absolutas. Essencialmente heróico, o seu espírito só maneja bem o sentimento amoroso quando, como na História, o pode heroicizar. O amor-ternura n 'est pas votre fait. É isto que eu chamo a «aplicação falsa» do seu dinamismo. Noto-lhe tudo isto por lealdade. Mas nao quero que julgue que este defeito lhe diminui o valor do seu género. A espécie de sentimento amoroso que há na História é, mesmo superior a quanto amor-ternura se imagina. Não compreendo muito bem, portanto, como desceu da altura da sua inspiração para aí fazer figura num nível que é inferior ao seu.

Tenho a mão cansada e o espírito desconexo. Esta carta é sincera, mas tem um ponto ridículo. É que tendo-lhe eu dito lamentosamente que não analisava, fui analisando e analisando. E que confusamente e tortamente analisei! A minha crítica ao seu espírito de poeta, por sincera que seja, nem é digna da sua individualidade, nem mesmo das horas normais do meu raciocínio.

Desculpe-me tudo isto — desde a desconexão à caligrafia — e creia que ninguém mais do que eu admira a sua Alma de poeta e de português, ou mais deseja que ela suba sempre, para uma arte cada vez mais lusitana e perfeita.

    Disponha sempre do seu

            Camarada dedicado e comovido admirador

                                  Fernando Pessoa

1913

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 - 89.

1ª publ. in Poesias Escolhidas , de Jaime Cortesão. Lisboa: Arcádia, 1960.