(1) A civilização a que chamamos europeia,
(1) A civilização a que chamamos europeia, e que é hoje a civilização propriamente dita — pois por ideias e fórmulas europeias se guia, e em acções e motivos europeus tem origem, a civilização das regiões fora da Europa — , assenta em quatro princípios que constituem a sua essência e individualidade. Não há que perguntar se esses princípios são bons ou maus, aperfeiçoáveis ou inaperfeiçoáveis. O que constitui a essência de uma coisa é aquilo que, retirado a essa coisa, a mesma coisa desaparece. Podemos lamentar, se quisermos, que o passado assim nos formasse, como podemos lamentar, se quisermos, que nascêssemos com a estatura ou as feições que temos; porém a nossa lamentação não pode constituir um desejo, nem informar um propósito. O que somos somos, o que seremos terá de sair do que somos, que não do que poderíamos — se o pudéssemos — ter sido.
Quatro são, disse, as bases em que assenta a civilização europeia, quatro os princípios que constituem a sua individualidade ou essência. São eles a cultura grega, a Ordem romana, a Moral Cristã e a Política Inglesa. Não temos que ver se esses princípios nos são agradáveis, a cada um de nós pessoalmente, ou se nos não são agradáveis. Temos que saber que são e o que são. Não temos que servir-nos da razão estulta - que, porque é estulta, não é razão — de que não somos cristãos, ou não somos ingleses; pela mesma razão repudiaríamos o que nos deram a Grécia Antiga e a antiga Roma, pois nenhum de nós hoje é grego da Antiguidade ou romano da Roma extinta. É a civilização construída por uma série de criações, cada uma das quais, por uma razão de ambiente próprio e circunstâncias históricas propícias, particularmente compete a uma determinada nação. Pretender repudiar um princípio formador de civilização porque seja alheio à nossa índole, ou quer dizer que repudiamos a mesma ideia de civilização, que envolve transformação e portanto alterações de “índoles”, ou que julgamos a nossa nação apta a produzir em si mesma a civilização inteira, conceito que pode surgir só no cérebro de um megalómano patriótico.
Por cultura grega entende-se, essencialmente, o racionalismo. O que distinguiu os gregos antigos dos outros povos foi o culto da Razão, da Crítica (com justiça se disse que os gregos criaram o Espírito Crítico) ou, como desde Comte se dizia, do Livre Exame.
Sem livros sagrados propriamente ditos, sem sacerdócio propriamente organizado, os gregos antigos, mau grado uma ou outra perseguição individual ao raciocínio individual (como no exemplo supremo da de Sócrates) mais por obscuros motivos políticos do que propriamente por motivos religiosos, sofriam de poucas peias sobre o exercício da razão. Acresce que a mitologia que tinham, essencialmente ateológica e sincrética, tornava a religião uma espécie de poesia ou de lenda, e cada qual modelava ou remodelava, a seu talante, as histórias e as índoles dos Deuses; as deidades dos gregos — como depois as dos romanos, porém mais estreitamente, pois a mente romana era utilitária e prática, que não poética e especulativa — eram palpavelmente criação dos homens; nem admira que, em tal sistema, aos homens fosse dado o ascenderem a deuses. «A raça dos Deuses e dos Homens é uma só», disse Píndaro; e nesse verso resumiu um aspecto da religião helénica.
O Prof. J. B. Bury intitula “A Razão Livre” o primeiro capítulo, que trata da Grécia e de Roma, da sua História da Liberdade de Pensamento. Este conceito grego sofria apenas limitação em uma circunstância política: grande número de pensadores, e ainda mais estadistas, da Antiguidade tinham a religião, embora fosse falsa, por necessária à plebe rude, capaz de compreender certos raciocínios, porém não de originar um raciocínio. Os romanos, como tinham da cívica e da política, como práticos que eram, e fora da prática estúpidos, preocupação maior que os gregos, notavelmente se apegaram a esta preocupação.
Consiste a cultura grega, base principal da nossa civilização, na supremacia da Razão sobre os outros elementos do espírito. Quer isto dizer, primeiro, que qualquer coisa é aceitável na proporção em que se nos apresenta racional; que o que emana da autoridade ou da tradição não tem como tal valor nenhum, adquirindo-o somente quando a razão o abona. Quer isto dizer, segundo, que os nossos sentimentos, as nossas fantasias, os nossos desejos e esperanças nada valem e nada significam se neles não pusermos a razão, isto é, se não estabelecermos neles aquele equilíbrio que existe nos raciocínios. Quer isto dizer, terceiro, que as nossas sensações ou impressões das coisas externas, nenhum valor têm se não ajustarem a essas coisas, se as não abonar uma conformidade com a realidade.
Racionalidade, harmonia, objectividade: é esta a tripla manifestação, através da qual se define a Cultura Grega, essência da nossa civilização, por que essência da inteligência, ou parte superior, dela.
Sempre que a nossa civilização tem contrariado o espírito de racionalidade, de harmonia e objectividade, a nossa civilização tem decaído. Decaiu em toda a parte onde a Inquisição, ou outra qualquer tirania semelhante, pôs peias ao pensamento individual. Libertou-se onde se estabeleceu a Reforma — não que o espírito dos Reformadores fosse, de per si, mais tolerante que o dos católicos; mas a necessidade de livre exame abriu, mau grado seu, as portas à Razão. E onde a Razão entra, entra a Grécia; e onde a Grécia entra, entra a civilização.
É evidente que este racionalismo não pode existir sem um certo individualismo, isto é, sem uma certa liberdade do indivíduo para pensar e expor o que pensa. Não devemos, porém, confundir esse individualismo com o individualismo político, que é o que hoje imediatamente se entende por individualismo. Pode haver individualismo sem haver propriamente liberdade. Frederico o Grande da Prússia concedia a mais larga liberdade de pensamento; porém não pode ser descrito como regime liberal aquele em que ele era rei absoluto.
Fixemos, pois, isto, e só isto: a Cultura Grega, essência da nossa civilização, caracteriza-se pelo Racionalismo. O racionalismo define-se pelo espírito de racionalidade nas ideias e na exposição delas, de harmonia nos sentimentos e nas suas entre-relações, de objectividade nas impressões e na maneira de analisá-las.
(2) Recebendo dos gregos este espírito, os romanos definiram-no melhor, limitando-o; definir, aliás,é limitar, e é-o mesmo definir no sentido de contornar. O racionalismo grego assentava em, ou produzia, um individualismo que invadia a esfera moral
política. O grego, amante que fosse da sua cidade, frequentemente não hesitava em traí-la, por paixão política, nascida de um individualismo excessivo. Alcibíades, ateniense dos atenienses, não hesitou em indicar aos Lacedemónios a melhor maneira estratégica de invadir o território de Atenas. Ora foi este extravasamento individualista do racionalismo que o espírito altamente político, e pouco mais que altamente político, dos romanos, se empregou em domar e limitar. Entendamo-nos bem: os romanos não deram a si mesmos o destino de limitar o individualismo grego. Os homens raramente, os povos nunca, têm tamanha consciência do seu papel histórico. Nem consistiu o papel de Roma em propriamente limitar o individualismo grego, reduzindo-o a simples racionalismo. Essa limitação foi consequência do papel histórico de Roma; Roma criou um elemento civilizacional de onde se derivou essa limitação. Esse elemento é o conceito de Estado, como elemento, não nacional, mas civilizacional. Roma criou o conceito de Estado como missão histórica, distinto do de Estado como simples império, ou simples nação. Criado esse conceito, ou ainda, mesmo, em via de criação, compreende-se que a vida cívica e política assume um valor acentuado, e os deveres do indivíduo para com o Estado um relevo notável. O conceito grego típico (excepto no caso incaracterístico da estéril Esparta) de que a sociedade existe para o indivíduo, que não este para ela, sofre uma limitação. Na Grécia, e sobretudo em Atenas, há esboços do conceito que haveria de ser historicamente romano; mas é que na Grécia, e sobretudo em Atenas, existe tudo ou claramente ou em embrião, porque a Grécia, mãe de toda a civilização, a tudo trouxe no ventre fecundo.
(3) A subordinação, pelo menos relativa, do indivíduo ao Estado deixava livre aquele na esfera intelectual, e o racionalismo grego subsistia. Mas, como, dada a mistura antiga do moral e do cívico, a indistinção, comum na Grécia e típica em Roma, entre o indivíduo moral e o indivíduo político, a subordinação política invadia uma esfera individual não propriamente política, e que, quando se desse a diferenciação haveria de querer libertar-se. Ora, assim como a política romana veio sofrear as consequências políticas do racionalismo grego, assim a religião cristã veio sofrear as consequências morais do estatismo romano. O passo célebre do Evangelho, que distingue entre o que é de Deus e o que é de César, resume, como um só passo, a essência da operação.
O Cristianismo, historicamente considerado, é um produto complexo. A sua essência, ou parte metafísica, é grega, é platónica; e com razão se pode dizer que foi Platão o vero fundador do Cristianismo. Elevada a filosofia de Platão às transcendências místicas da Escola de Alexandria, infiltrou-se esta, através de interpretações várias da Cabala judaica, numa qualquer seita herética dos judeus — presumivelmente os Essénios —, e daí, agregando mitos (na maioria assírio-babilónicos) e fragmentos vários de coisas históricas, veio a formar-se o Cristianismo, que, depois de uma luta, cujo resultado esteve um tempo incerto, com uma religião rival, o Mitraísmo, finalmente venceu e assoberbou o Império: quanto à pessoa do Fundador do Cristianismo, a própria existência dela é indeterminável; a complexa inautenticidade dos Evangelhos, as interpolações das Epístolas de Paulo, as falsificações de textos e de testemunhos na primitiva literatura da seita, tornam hoje impossível qualquer opinião que timbre em presumir de segura. S. Paulo, omitindo das cartas que lhe atribuem dois ou três textos reconhecidamente interpolados, não conhece um Cristo com biografia, senão uma abstracção redentora e divina. A máxima probabilidade — mas não passa de probabilidade — é que o sistema houvesse tomado por núcleo a vaga figura do Jeshu ben Pandira, que, segundo o Talmude (em passo insuspeito, pois o não relaciona com Cristo) foi pendurado numa árvore e lapidado na véspera da Páscoa, em Lídia, no reinado de Alexandre Janneo — isto é, cerca de 100 anos antes da nossa era.
Tudo isto, porém, pouco importa. O que importa, no nosso caso, é que a religião que, viesse de onde viesse, apareceu na história com o nome de Cristianismo, veio contrariar com um individualismo especial e novo o conceito estadista do Império Romano. Herdando deste, em cuja substância se criou, o imperialismo, o espírito de expansão e universalidade, e assim sobrepondo ao seu fundo judaico um proselitismo que os Hebreus desconhecem, surgiu no Império em uma espécie de concorrência com ele, como força dissolvente e anarquizante — o bolchevismo da época. Todos os argumentos sociais, de que hoje nos servimos contra o bolchevismo, puderam os Romanos empregá-los contra esta força estranha e desintegrante. Nos seus resultados últimos, porém, o Cristianismo não foi desintegrante: foi tão-somente limitador do elemento que Roma trouxera à civilização, como o havia sido Roma do elemento que trouxera a Grécia. Havia uma diferença. Roma procedeu, como civilização, directamente da Grécia; o Cristianismo não procedeu directamente de Roma, senão dos resultados de Roma — isto é, de diversas forças abrangidas pelo Império Romano, e, pela existência deste, postas em possibilidade de contacto e de entreinfluência.
A essência prática do Cristianismo está no conceito de que o indivíduo humano — alma imortal criada por Deus e remível por seu Filho da condição pecaminosa em que a queda a lançara — tem em si mesma, como tal, um valor superior maior que o de todos os poderes e pompas da terra, porque é um valor de outra ordem. Deste conceito se deriva estoutro - que o indivíduo moral é distinto do indivíduo político, e a ele superior. Deus está acima do Imperador, e a salvação da alma acima do serviço do Império. E as consequências últimas do conceito primário são estas: o critério moral é absoluto, o critério político ou cívico é relativo. O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Nenhum Estado, nenhum Imperador, nenhuma lei humana podem obrigar o indivíduo a proceder contra a sua consciência, isto é, contra a salvação da sua alma. O inferior não pode obrigar o superior.
É nisto que consiste a essência da moral cristã, a terceira base da civilização em que vivemos. Ainda onde desapareceu o Cristianismo, subsiste a moral que ele criou, porque a sua criação foi moral, que não religiosa; como religião o Cristianismo é sincrético.(...)
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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