Victor Hugo - Mas essas constantes frases colossais de Victor Hugo?
Victor Hugo
Mas essas constantes frases colossais de Victor Hugo? Essas frases realmente suprem o lirismo essencial, são o lirismo de superfície. O verdadeiro lírico dispensa grandes frases, belezas de metáforas, imagens sublimes; o mistério da sua arte está nisso mesmo. Canta com a alma e da alma, não com a inteligência, imaginativa ou não. É evidente que se, além do seu lirismo essencial, o grande lírico tiver a beleza de superfície também, será tanto maior. Só que essa beleza, por natureza de superfície, essas frases, essas metáforas, essas imagens, serão pelo grande lírico transmutadas para lirismo puro. O lirismo far-lhes-á perder o seu carácter superficial. São desta ordem as frases célebres, as imagens célebres de Shakespeare, essa segunda Natureza, mais espiritual do que a primeira.
Quem lê Victor Hugo, pensa que o homem que escreveu aqueles poemas pode ter sido um sincero, mas também pode não o ter sido. A sinceridade não é evidente. Eis o que não acontece com o verdadeiro lírico. Do patriotismo de Victor Hugo, ou da sua grande intensidade, um crítico pode, sem ser por isso coisa que se pareça com estúpido, duvidar; Mas ninguém pode duvidar do patriotismo de Camões. Veja-se, como é lírica através dos obstáculos da expressão mitológica e da grandiloquência este dístico final de uma estância de Camões: “Hipocrene”.
E que a grandiloquência lírica é diferente da grandiloquência retórica.
Os retóricos têm a grande vantagem de serem facilmente compreendidos por grandes e de não perderem muito com a tradução, porque as frases epigramáticas e retóricas passam com facilidade de língua para língua. O lírico não. É quase impossível traduzir poesia lírica; precisa um tradutor lírico também, mas perde sempre. A pior poesia é esta. Que fica dos sonetos de Shakespeare em uma tradução? O que fica das suas canções espalhadas pelos dramas? Quem poderá reproduzir por tradução uma poesia lírica de Shelley? Como traduzir bem um soneto de Antero, sem desaparecer, pelo menos, aquela música suave, triste e penetrante, íntima de lirismo, que é parte psicologicamente componente da grandeza lírica de Antero? E, para último e flagrantíssimo exemplo, tomemos o célebre soneto de Camões “Alma minha gentil”. Traduzido, nenhum estrangeiro compreende onde esteja a beleza daquela linguagem sem imagens, metáforas nem frases, directa e simples, quando é justamente aí que a beleza toda está, una com o movimento lírico contínuo e íntimo do ritmo inquebrado e dolorido. Um grande poeta retórico ou epigramático pode ser lido em tradução, sendo ela boa; quem não sabe a língua, escusa, havendo essa boa tradução, de por tão pouco a estudar. Mas quem quiser ler um poeta lírico não pode aceitar tradução alguma, por fiel que seja mesmo à alma do poeta. Tem de aprender a língua em que a poesia foi escrita. A tradução de um poeta lírico só serve para dar uma ideia do que ele escreveu e sobre o que escreveu; o leitor dela deve porém estar sempre premunido com uma certeza: a de que essa tradução por boa que seja é ao mesmo tempo incompleta e falsa.
A atitude dos maiores críticos com respeito a Victor Hugo é facilmente explicável. Sentem instintivamente que ali não está o lirismo supremo, mas sentem inquietamente que o poder imaginativo é enorme. Deficientes em análise voam e revoam em torno ao enigma sem o compreenderem bem.
Confesse-se: realmente causa certa inveja ver a extraordinária exuberância imaginativa de um poeta que, ainda assim, não é um imaginativo supremo; causa certa inveja a facilidade dentro da inconsciência com que tudo aquilo é tumultuosamente dito. Ou desejamos que o que ele diz seja mais estúpido, ou então que ele tenha mais consciência e compreensão das sublimidades que diz, ou, melhor que se acham expressas no espírito dele. O caso é porém que, se fosse sem valor o que ele escreveu, o problema cessava; e se ele tivesse consciência absoluta da grandeza do que diz, isto é, se analisasse os seus pensamentos, não seria capaz de os ter daquele modo, expressos daquela maneira e com aquela exuberância. A grandeza e a pequenez do homem são as duas faces da sua natureza. É ocioso tentar conceber no reverso de uma moeda de tostão o reverso de um vintém ou de uma libra.
Que não é um lírico supremo? Decerto que o não é. Mas, perguntar-se-á, não será isto um erro, devido à forma das suas poesias, aos alexandrinos, às parelhas, à própria língua francesa, imaleável, suavemente dura, musicalmente rígida? Não; a poesia lírica gera a sua própria forma; a forma da poesia corresponde sempre ao pensamento. Se a forma não é lírica, não o pode ser a ideia. E uma língua não servir para o lirismo indica apenas que o povo que a fala não serve para o lirismo; e, se o povo é de natureza não-lírico, como pode ser lírico um membro desse povo ? Nada mais simples e fácil de compreender.
A poesia lírica pura e suprema conhece-se por se manifestar através de um quase nada de pensamento e de emoção. Assim nos seguintes trechos eminentemente líricos o que é que há de intelectual ou de nitidamente e coerentemente emotivo:
cravo roxo
verde pino
Claro está que quanto maior for a ideia, mantendo-se igual o lirismo, tanto maior será a poesia lírica.
Outro característico da poesia lírica essencial — é realmente outro aspecto do mesmo característico — é o facto de que quanto menos poética em si a forma, mais a poesia lírica essencial a transmuta para uma forma suprema. Assim as três línguas europeias onde maior poesia lírica pura e essencial existe são a inglesa, a alemã e a portuguesa, que são, qualquer delas, inferior em música às línguas francesa, espanhola e italiana. E dos ingleses o maior lirista é o escocês, justamente quem mais áspera e impoeticamente fala a língua comum da Grã-Bretanha, e o menor lirista o irlandês, cuja língua e cuja forma de falar a língua inglesa é a menos áspera de todas. Não é aqui o lugar para estudar o lirismo especial de cada nação europeia.
O mesmo que se dá com a língua dá-se com a forma escolhida. Em inglês a forma lírica suprema é o verso solto que é, por si, a forma mais prosaica do verso. Em alemão o mesmo acontece. Em português parece não acontecer porque escrevemos pouco verso solto e não lhe conhecemos (degenerados que estamos, em regeneração ainda assim, do nosso lirismo racial) o grande valor lírico. Ainda assim basta ler o esplêndido verso solto do Sr. Lopes Vieira na parte de “O Encoberto” para ver onde pode ser levada a música do verso solto português. Em língua alguma, a não ser em inglês, se pode obter estes efeitos extraordinários do verso solto:
( “Encoberto”, p. 40, dois primeiros versos,
ou
A janela tristíssima que deita
Para as bandas do sonho e dos amores.)
O leitor vê facilmente como a música subtil e íntima destes dois trechos lhes é o corpo de que o seu lirismo supremo (...) é a alma. A tendência imediata e natural em quem lê estes trechos de os ler quase que cantando-os indica quão líricos são. Toda a verdadeira, a grande poesia lírica produz esse efeito. Não é um erro, é uma inevitabilidade, o ler trechos como estes “with a prose mouth”, cantando-os. Sem entonação de música só o verso retórico se pode ler.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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