[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 2 Set. 1914]
Lisboa, 2 de Setembro de 1914
Meu querido Amigo:
Recebi o seu postal, e foi-me muito grato saber que a sua viagem foi boa. Aguardo a sua carta prometida. Escreva tão extensamente quanto lhe for possível. Por mim, para que não tarde a minha carta, começo-a hoje.
Mau grado a alguma depressão, constante desde que lá fora é guerra, tenho passado com razoável calma pela ilusão sucessiva dos dias. Nada tenho escrito que valha a pena mandar-lhe. Ricardo Reis e Álvaro futurista - silenciosos. Caeiro perpetrador de algumas linhas que encontrarão talvez asilo num livro futuro. Mas essas linhas são esboços de poesias, não poesias propriamente falando. O que principalmente tenho feito é sociologia e desassossego. V. percebe que a última palavra diz respeito ao «livro» do mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai pois complexamente e tortuosamente avançando.
Quanto à sociologia, além de ter acrescentado alguns raciocínios e análises à minha «Teoria da República Aristocrática», tenho deliberado teorias várias sobre a guerra presente e sobre as forças sociais, nacionais e civilizacionais em acção. Creio ir-me aproximando de uma interpretação do conflito com visos de verdadeira, ou, pelo menos (sejamos sempre um pouco cépticos), de plausível.
O facto é que neste momento atravesso um período de crise na minha vida. Preocupa-me quotidianamente a necessidade de dar ao conjunto da minha orientação, tanto intelectual como «existente na vida», uma linha metódica e lógica. Quero disciplinar a minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito e evolução interconexa e divergente. Não sei se estou sendo perfeitamente lúcido. Creio que estou sendo sincero. Tenho pelo menos aquele amargo de espírito que é trazido pela prática anti-social da sinceridade. Sim, eu devo estar a ser sincero.
Não se admire v. desta minha atitude para comigo mesmo. Tenho vivido tanto e tão cansado tempo comigo que estou sempre de pé atrás para com o que sinto e penso. Muitas vezes, creio firmemente, levo horas intelectuais a intrujar-me a mim próprio. Daí a necessidade em que estou de me acautelar sempre com o que digo. Repare v. em que, se há parte da minha obra que tenha um «cunho de sinceridade», essa parte é... a obra do Caeiro.
Inútil e criminal, porém, o está-lo maçando com isto. Passo adiante, deixando-me.
O Sá-Carneiro resolveu-se afinal a deixar Paris. Agora está em Barcelona, se é que não decidiu já vir para Lisboa, o que naturalmente, mais tarde ou mais cedo acontece. Acho que ele fez bem. Como a guerra vai correndo, não parece impossível um cerco de Paris pelos alemães — o que, de resto, naturalmente pouco altera a sua probabilíssima derrota final.
Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues.
(Introdução de Joel Serrão.)Lisboa: Confluência, 1944 (3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1985).
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