Entre os vários preconceitos que formam a única bagagem literária…
Entre os vários preconceitos que formam a única bagagem literária com que os nossos “críticos” vão de viagem para Santarém (um conhecido provérbio ali os espera), o mais singular e inexplicável é aquele que consiste em confundir cultura com erudição. É frequente apanhar os nossos pensadores de jornal em flagrante delito de afirmações como esta — que tal criatura é culta porque tem lido muito, porque sabe muito, porque compulsou, assimilando, uma grande paginaria de livros.
Ao contrário dos preconceitos da plebe legítima, que muitas vezes têm uma haste de observação, os dogmas da plebe intelectual são falsos em todo o seu comprimento. Este, que acabo de citar, é um dos mais falsos. Porque não só erudição e cultura não são a mesma coisa, como, até, são coisas opostas. Não vão julgar, decerto, que a minha explicação vai ser que é erudito quem leu sem combinar o que leu, e culto quem lê aproveitando. Eu nunca dou explicações que se possam prever; se assim fosse, valer-me-ia a pena dá-las?
A diferença entre culto e erudito é que, quem é erudito torna-se erudito, e quem é culto nasce culto. Nascitur, non fit é verdade do homem culto como do poeta. Porque a cultura, mais do que uma mobilição do espírito, é uma atitude dele. E essa atitude, quando se não nasce com ela, é escusado tentar adquiri-la. No seu ensaio sobre Shakespeare, o crítico inglês Walter Bagehot encontra no poeta uma faculdade proeminente, a que, de acordo com a tendência inglesa para [...], define a faculdade de experienciar. Desculpe-se a tradução que faço; outro termo, já feito, não conviria. Shakespeare, opina Bagehot, tinha a faculdade primacial de tirar de tudo quanto via ou lia, de tudo a quanto assistia, elementos de originalização; a isso chama Bagehot a faculdade de experienciar. Em contraste, ele aduz Guizot e Macaulay, os quais, leitores assíduos, políticos assíduos, não colheram, porém, da sua experiência das duas vidas outro ensinamento do que ensinamento nenhum.
Sou eu, porém, e não Bagehot — não vá a malevolência do leitor sorrir que eu adapto e traduzo o que vou teorizando — que faço a distinção entre culto e erudito. Homem culto é aquele que, de tudo a que assiste aumenta, não os seus conhecimentos, mas o seu estado de alma. O erudito lê e fica sabendo; quanto mais lê, mais fica sabendo. O homem culto, em geral, quanto mais lê de menos fica certo. A segurança e a confiança são atributos finais da erudição — como o cepticismo e a hesitação apanágio extremo da cultura. Uma erudição de lombada, como dizem os parvos, serve de mais a um culto, que uma leitura de miolo a um erudito. Um título pode fazer colher mais de toda a obra — dado que a alma nasça ceifeira — do que a leitura de toda ela. Nós não temos homens cultos; temos eruditos apenas. Ou, antes, os homens cultos que temos são homens de génio, o que é de mais para um povo tão pequeno.
Julgarão talvez que confundo culto com inteligente. Seria um erro julgar tal coisa. Eu nunca confundo nada. O homem inteligente é o que com facilidade tira conclusões do que lê ouve; o homem culto é o que, naturalmente, sente e não tira conclusões, ou as tira, conforme calha ao seu feitio do momento.
Vem tudo a propósito de chegar a dizer qual é a tragédia de Portugal. É a de que, tendo vários eruditos, e muita gente inteligente, pouquíssima gente temos que seja culta. Vejam quanta criatura, quando lhe apresentam qualquer coisa de novo, procura compreender. Um homem culto procura sentir. Perceber envolve um esforço. Sentir envolve uma passividade deliciosa. O feitio enérgico, violento, pouco indolente do português leva-o para a acção precipitadamente. A ciência da inacção, a mais civilizada das ciências, pouco está desenvolvida entre nós. A nossa tendência para agir ficou-nos, como uma maldição, da aventura das descobertas. Expiamos a glória dos nossos maiores na doentia preocupação do útil.
Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.
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