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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Artigo para A Águia

Artigo para A Águia

... acrescido duma entrevista altamente provocadora, num semanário de Lisboa, em que contudo a nossa pobre cidade, que habita a sombra tão sossegadamente, lhe mereceu dois secos remoques.

Pouco importa isto em geral, e em particular, mormente, o que a meu respeito ouvi. Quero, em todo o caso, pagar-lhe, fazendo-lhe a justiça que merece que lhe seja feita. E a princípio lhe direi que, se discordo de que ele seja, como se intitula, o maior poeta do mundo, não deixa de ser um dos maiores da nossa época e da nossa terra.

(...) é com elementos perfeitamente espiritualistas que constrói o edifício do seu materialismo absoluto.

Por mais que ele queira encontrar nas coisas «existência» e não «significação» basta ler a poesia numerada (...) para se ver quanto — e flagrantemente — sai da órbita das meras, auto-(...), atribuições inspiracionais. A poesia é esta

        (a borboleta...)

Estimo em mim a circunstância de ao mesmo tempo que admiro profundamente estes versos magníficos, poder apontar ao seu autor que cometeu misticismo puro. Tratar-se-á, talvez, de um misticismo às avessas, com uma aplicação nova e especial; mas do misticismo não pode haver dúvida nenhuma.

O materialista espontâneo e absoluto nunca faria a distinção ultra‑intelectual, ultra-metafísica, ultra-mística, entre uma borboleta como borboleta e o movimento e a cor das suas asas, consideradas estas, como movimento e cor abstractos. Sim, não se trata de uma forma de ver dentro do materialismo do Poeta; aqui há um ponto de vista abstracto e estranho ao materialismo.

No fundo, a sua observação é tão pouco materialista e concreta que ele (repara) numa folha numa determinada árvore como numa determinada flor: é sempre ver árvores, ver folhas abstractamente. Podia ser como homem da cidade, de livros apenas, afastado de tudo quanto é natureza e os problemas dela, tal o seu afastamento de quanto, na natureza, é realmente realidade, (...)

Um homem que diz que não há «árvores» (no plural) mas «muitas vezes uma árvore» podia ter ido mais longe, no [...] lógico do seu materialismo aqui apenas mental, corpóreo e não materialista, e ter reparado em que «árvore», na sua teoria, não existe. Só existe tal carvalho, tal sobreiro, tal eucalipto — mais, nem «eucalipto», «sobreiro» ou «carvalho», abstractamente existem, nem «árvore» é «realidade» alguma.

O que o sr. Alberto Caeiro faz é uma abstracção concreta. Veste de concreto uma tendência abstracta, que, naturalmente não de propósito, não deixa atingir o seu máximo de abstracção, mas que fica, bem reparando, nem abstracta nem concreta. E o materialismo abstracto foi tornado, por conseguinte, num materialismo extremamente relativo.

No sr. Alberto Caeiro toda a inspiração, longe de ser dos sentidos, é da inteligência. Ele, propriamente, não é um poeta. É um metafísico à grega, escrevendo em verso teorizações puramente metafísicas.

Repito que o admiro, que o admiro extraordinariamente. Mas não apraz à minha análise chamar-lhe um poeta abstractamente materialista. É um filósofo abstractamente materialista aureolado de alma em um poeta abstractamente místico. Creio no Deus em que o sr. Caeiro não crê que existe como afirmação do sr. Caeiro e como verdade pura.

Assim como para materialista o acho espiritualista em extremo, e como para poeta o acho filósofo em excesso, para espontâneo acho-o consciente de mais. Sei o que é pensar auto-objecções [...] ao ler O Guardador de Rebanhos pois reparei como o Poeta aqui e ali, nesta ou naquela altura dos seus versos, vai sub-repticiamente ou não, respondendo às objecções possíveis. Assim (...)

Toda a sua obra, para quem sabe, analisando, olhar para além do seu primeiro aspecto de desordenada e casual, é extraordinariamente calculada, medida, reparada.

Por muito que repare para as coisas, o sr. Alberto Caeiro repara razoavelmente para si próprio. Enganará os incautos da crítica; mas para quem, como eu, não vê, no dado, senão o analisável, (...)

Torno a repetir que admiro extraordinariamente o sr. Alberto Caeiro e que o acho um dos maiores e dos mais originais poetas que tenho lido. E torno também a repetir-vos que o não aceito como ele se nos oferece, pois que, sob a máscara do materialismo absoluto, lhe vejo a alma mística, cheia de (...). Ele perdoar-me-á que eu lhe diga que mais o admiro por isso, que mais interessante o acho por isso.

Note-se bem que, ao afirmar que o sr. Alberto Caeiro é consciente na sua arte e que o seu materialismo é um nome, eu não quero dizer que ele tenha consciência disso... Creio que ele se engana a si próprio. Ele não tem consciência, creio, da sua consciência.

O que me leva a crer que o sr. Alberto Caeiro não é absolutamente um poeta consciente, como seria se fosse, por exemplo, um mistificador ou um puro filósofo é que contende a sua teoria nalguns pontos possíveis e absolutamente visíveis.

(IV...)

Ora salta aos olhos do pensamento que nenhum ramo de árvore, a supor-se (o que já é puro «entendimento» à Caeiro) que pode «julgar» qualquer coisa, não julga que o sol é Deus ou que a trovoada é uma quantidade de gente zangada. Isso julga como humana, um homem primitivo, e é duvidoso, que mesmo desse se pudesse dizer que, naturalmente, achasse que o sol é Deus.

Presto homenagem ao esforço do sr. Alberto Caeiro ao querer-se despir de tudo quanto é artificial e puramente humano. Constato, porém, que nem sempre o faz, e isto conquanto me parece visível que não repara que o está fazendo. A poesia quatro (a n.o 4 do livro) é um exemplo flagrante.

s.d.

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

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1ª versão: Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.