Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

SALOMÉ

SALOMÉ

[SALOMÉ] – A minha beleza faz os homens sonâmbulos, e o som (encanto) da minha voz distrai-os de sonhar. As suas preferidas odeiam-me sem saber se existo, porque entre as palavras vagas dos seus discursos amorosos, a minha imagem embarga as frases e elas sentem-me passar, como um canto de sereia, nos esquecimentos da voz, e nos abrandamentos dos braços e das mãos, que cingem ou que apertam. Sou o perfume que, uma vez sonhado, lhes faz aura à imaginação, e não poderão ter esposa, nem noiva, nem até irmã a que acarinhem, porque se lembram de que eu sou a princesa que um dia lhes foi toda a vida.

Os meus passos vão leves sobre as relvas, como se fossem memórias. Nos gestos que faço com os braços há um sorriso da minha boca triste. Os meus olhos não conhecem uma promessa certa, e quando são baixos e só os cílios vivem, os corações anseiam com uma grande tortura.

Dizem que sou a maravilha, mas eu não sei quem sou. Habita em mim um fluido de desastres que cai sobre as épocas futuras como uma chuva que é nevoeiro.

Morreriam milhares só por beijar minhas mãos. Milhares deixariam seus lares só por ouvir a própria voz chamar-me a mim princesa. Pelo meu desprezo visível trocariam muitos todos os amores que lhes foram dados, e até aqueles que desejariam. Sou fatal como as noites e os outonos, e no meu coração há já uma saudade de todos quantos matarei.

Os escravos rastejam com os olhos quando mal me podem olhar. Passo entre as alas dos soldados e sinto-os que tremem como folhas ao vento. Levarão saudades desse momento como de uma grande maldição, e acordarão nas grandes noites de estio, quando o suor entra na alma, pávidos da memória sinistra que vive do meu perfil entrevisto, dos meus olhos desviados, do recorte das minhas sobrancelhas muito negras contra a pele morena muito branca da minha fronte coroada de sombras.

As escravas invejam-me com amor, e cada uma sonha, a sós com o leito sem outro peito, em como haveriam seus olhos de fazer amar os cães, e seus gestos de fazer relinchar os cavalos, nas grandes noites em que a virgindade se sente nas entranhas.

Os gatos roçam-se contra as minhas pernas e sentem-se tigres até ao sexo. As aves cantantes calam-se quando passo, e as rosas altas roçam pela minha face porque eu tenho o privilégio dos caminhos.

[SALOMÉ] – Trazei, disse, vossos sonhos para este terraço de onde se vê o mar. Quero sonhar convosco em voz alta, e que a minha voz teça com as vossas o casulo de uma história em que nos fechemos da vida. Para aqui são as terras do reino do que me é como pai, para ali o mar e as terras do outro rei: ambos têm gente a quem governam, em ambas amam os que amam e são forasteiros os que passam; ( ...)

Contai, sim, o que vos conto que vos contar-vos. Sonharmos, sonharemos o mesmo sonho. Se o sonharmos todas, ele será mais belo do que é, e terá uma vida longínqua e trémula como a candeia das imagens que vivem no fim do mundo.

Eu, filha de Herode, não tenho dia em que não queira a noite nem noite que não anseie pelo dia. (...) A minha vida é uma planície a que se segue outra planície. Não raia sol que me traga a alegria do outro, nem lua que me lembre mais os sonhos que não sei sonhar.

[SALOMÉ] – Sinto-me menos imortal que as cousas que sonho. Quando o sol nasce ou morre, a minha sombra é infinita. (...) Projecto-me quando sonho sobre todas as épocas. Quando sonho sinto que não morro. É quando acordo, e escuto com o meu sangue, que eu ouço passar a vida.

S[ALOMÉ] – Minha vida tem um cansaço de mais cousas do que a minha vida. Não sei mais que sonhar, mas hoje, que me pesa tanto o não saber mais que sonhar, e tenho sem querer a necessidade do sonho, quero que sonheis comigo. Quero que sonhemos juntas. Se uns vivem juntos, porque não sonharão juntos outros? Há alguma diferença entre o sonho e a vida?

A – Mas como, senhora, sonharemos juntas? Tenho sono, e gostaria de sonhar; mas não quero dormir, porque os sonhos, quando se dorme, são de outra alma, e cruzam-se com os que desejaríamos ter, como os peregrinos nas encruzilhadas.

S[ALOMÉ] – Eu farei para mim um sonho, e esse sonho será uma história. Irei contando alto essa história, e vós ouvireis e sonhá-la-eis comigo. Uma ou outra de vós, quando a história lhe for ensopando a alma, me irá dizendo o que vê na alma dessa história, e que eu me esquecesse de contar. Será como um canto em que cantemos juntas num sentido, e cada uma por sua vez na voz. Dizei-me que pode ser assim, para que eu passa sonhar a história que há-de ser.

A2 – Se a história for bela, senhora, será pena que fosse apenas sonho; se não for bela, será pena que se houvesse contado.

S[ALOMÉ] – Se a contarmos bem e for bela, e por isso a sonharmos bem, será mais que um sonho, nalgurn lugar, algum momento, ela terá de ser, porque as coisas que acontecem não são senão como são narradas depois. O que aconteceu ninguém o sabe, porque ninguém sabe o que está acontecendo; os olhos têm a venda de ver e os ouvidos estão tapados com o ouvir. Os livros grandes que meu Pai lê contam coisas maravilhosas do passado. Essas coisas são narradas, porém talvez nunca se dessem. Mas as coisas deram-se porque foram narradas. Que temos nós com o que foi? O que foi é morto e como se não fora nunca. O que é do que foi é verdadeiramente hoje foi antes. O mais é pensar de loucos ou de crianças, que querem a verdade ou a lua nas grandes noites de verão, como esta em que a alma é ampla e triste.

A – Assim seja, senhora, e sonhemos. Começai vós que quereis começar, e tendes a voz das fontes escondidas, e os gestos, quando acaso os abris, das palmeiras que mostram que há vento, quando não há vento que toque as pálpebras nem brisa que roce na face a distracção dos cabelos.

S[ALOMÉ] – (depois de uma breve pausa) Suponde que... Não, supor é perder... Não, não é assim que se sonha... Espera, que quero ver... (Outra pausa) Havia, no deserto para além do deserto, entre a parte dos desertos que é rochedos, e a solidão é mais dura do que nas areias e a alma mais triste que ao pé das palmeiras, um homem que queria um deus, porque nao havia deus dos homens que habitassem naqueles desertos nem naquela alma. Queria um deus com mais sede que a da água, e mais fome que a dos frutos que são como água e são doçura, e para os quais as crianças estendem o olhar e a mão. Esse homem chamava-se João, porque no meu sonho se chama João. É um nome de entre os hebreus, mas não há felizmente profeta ou rabino de entre eles que ainda usasse deles. Esse homem clamava-a porque a queria e não porque ela houvesse de ser. Mas ele clamava tanto que sem dúvida o ouviria esse deus que ele estava criando. E o deus viria em sua hora, porque para quem sonha não há hora, nem se desencontra a alma com o seu destino.

S[ALOMÉ] – Quer, com todo o meu sonho, que este sonho seja verdadeiro. Quero que fique verdade no futuro, como outros sonhos são verdades no passado. Quero que homens morram, que povos sofram, que multidões rujam ou tremam, porque eu tive este sonho. Quero que o profeta que imaginei crie um deus e uma nova maneira de deuses, e outras coisas, e outros sentimentos, e outra coisa que não seja a vida. Quero tanto sonho que ninguém o possa realizar. Quero ser a rainha do futuro que nunca haja, a irmã dos deuses que sejam amaldiçoados, a mãe virgem e estéril dos deuses que nunca serão.

S[ALOMÉ] – O que é esse grito na noite, lá em baixo?

A – Trouxeram ao tetrarca a cabeça de um bandido.

S[ALOMÉ] – Tragam-me a cabeça de um bandido. Tragam-ma numa salva de ouro.

S[ALOMÉ] – De quem é essa cabeça?

X – De um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Não quero que seja de um bandido que matava nas aldeias. Quero que seja de um santo que criasse deuses.

X – Era de um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Aproxima-se de mim a salva. (…). Vede como as pálpebras podem ser de um sonhador, e a boca pode ser de um pecador arrependido ou de um asceta que nunca pecou. As faces têm rugas — podem ser de vigília ou de ódio, mas isso importa pouco, porque estamos criando a história. Afasta um pouco mais a cabeça. Quero vê-la, mas não quero vê-la bem. Afasta mais ainda. Aí, onde está, a luz do luar dá-lhe como um malefício. Quantos luares mais lhe não darão no sonho que outros terão do meu! Leva-a mais para longe. Estou cansada. Sonhei demais. Que homem era esse?

X – Era um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Não te disse que essa cabeça era a de um santo que fazia deuses? Porque me dizes que era de um bandido que matava nas aldeias? Chamai o capitão da guarda — o que é louro e triste.

(…) A princesa chama o capitão de guarda.

Um murmúrio vago. O capitão aparece.

CAP – Chamaste-me, senhora?

S[ALOMÉ] – Chamei. Está ali um homem com uma salva.

CAP – Senhora, vejo.

S[ALOMÉ] – Na salva está a cabeça de um santo que criava deuses. Reparai no homem que tem a salva na mão.

CAP. Senhora, reparo.

S[ALOMÉ] – Esse homem desmentiu-me. Quero que mateis esse homem.

CAP – Senhora, que mate esse homem?

S[ALOMÉ] – Tendes a espada e a minha ordem. Que mais razão podeis querer?

(O capitão desembainha a espada e mata o servo. Este cai com a salva. A salva e a cabeça, separadas, fazem estrondo alto e baixo, no chão de pedra. Entra o Tetrarca.)

H[ERODES] – Que novo sonho é este, ou que novo capricho? Que malícia fez que se trouxesse aqui esta cabeça que pedi me fosse levada? Quem a desviou dos meus olhos para os teus?

S[ALOMÉ] – É a cabeça de um bandido que matava nas aldeias.

H[ERODES] – Não é. Esta é a cabeça de um santo que estava a criar deuses pelos desertos. Mandei-o matar e quis que me trouxessem a sua cabeça. Porque foi que a pediste?

S[ALOMÉ] – Porque foi que a pedi? Porque foi que a pedi? Não sei. Não sei. Que foi isso que disseste, senhor que me tira a alma toda do coração. Não digais que me disseste a verdade porque isso é demais para o meu sonho. Ah, que talvez o sonho não crie mas veja, e não faça senão o que adivinha. Aquela cabeça era de um santo que andava nos desertos?

H[ERODES] – Que vinho de luar te embebedou, que falas com os mortos entre os vivos? Aquela cabeça é de um santo que cantava nos desertos a memória dos deuses futuros.

S[ALOMÉ] – A cabeça? Deixem-me vê-la de perto. (Ajoelha ao pé dela) (Toma-a nas mãos) Faz medo e nojo, como os deuses. É a cabeça de um monstro porque é a de um morto. Tetrarca, quem era este homem?

H[ERODES] – Era um homem que anunciava nos desertos, cantando e gritando, a vinda do fim das coisas e de um deus que teria piedade. Gritava entre a rochas solitárias que os deuses antigos eram como os homens quando vivem, mas o deus novo seria como os homens quando morrem, a imagem da tristeza e da verdade, Não lhe vi ainda a cabeça. Erguei-ma na salva para que eu a veja.

(O capitão da guarda olha em redor faça. Abaixa-se, toma a salva, coloca nela a cabeça e ergue-a ante a vista do Tetrarca. O Tetrarca inclina a cabeça para a frente e fita a cabeça com insistência.)

H[ERODES] – É a cara de um homem que viveu entre os desertos e esperava novos deuses ao pé de rochedos. Parece que chorou muito: as faces têm sulcos como os que as águas fazem nas rochas. É terrível, mas por detrás das pálpebras cerradas sinto com a própria vista que os olhos são tristes... Quem matou aquele escravo?

CAP – Fui eu.

H[ERODES] – Porque o mataste?

CAP – Mandou a princesa que o matasse.

H[ERODES] – Porque foi que mandaste matar?

S[ALOMÉ] – Não sei. Não sei nada. Sucede qualquer coisa de tão terrível que não sei como falar. Mandei-o matar porque ele disse que aquela cabeça era de um santo que criava deuses nos desertos.

H[ERODES] – Mas era de um santo que criava deuses nos desertos.

S[ALOMÉ] – Não era: era de um bandido que matava nas aldeias. Deponde a salva no chão, retirai-vos. Tenho sono. Pai, tenho sono. (Para as aias) Retirai-vos vós também. Pai, quero dormir. Deixai a salva aí no chão, com a cabeça. Pai, ide-vos também daqui.

S[ALOMÉ] – Eu bem sabia. Eu bem sabia. Não se pode sonhar sem Deus saber. A minha mentira era verdade. Era certo que no desertos havia um santo que chamava por um deus novo, um deus triste como as rochas e sozinho como as grandes planuras. Eu bem sabia que alguém haveria de querer um deus que conhece os sonhos e tem pena do que não têm nada.

Vou fazer como se estivesse num festim. Vou bailar à roda da tua cabeça até cair sem vida. Vou dançar no funeral das coisas que morreram com a tua vida. Vê, vou fazer um bailado ao luar, para dizer tudo.

s.d.

Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986

 - 215.

1ª publ. in Fernando Pessoa et le Drame Symboliste. Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977