[5] O Dr. Quaresma desligou as mãos detrás das costas,
O Dr. Quaresma desligou as mãos detrás das costas, olhou sem expressão e rapidamente para mim, e, estendendo a mão direita de repente, tocou-me no ombro. Depois tomou à posição em que estava, as mãos outra vez atrás das costas, atadas, e os olhos perdidos sobre o Tejo. .
Como uma bola de sabão, estoirou-me a alma, sem ruído, dentro de mim. Fiquei suspenso de um vácuo interior, sem razão, sem fala, sem gesto. Se o Dr. Quaresma tivesse dito qualquer coisa, eu teria respondido qualquer coisa, teria tido a que adaptar a minha razão e a minha voz. Ao silêncio não pude responder nada. O seu gesto era guilhotinante. No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa... Não pude... e então compreendi violentamente quanto pode em nós, se sabem excitá-la, a consciência da culpabilidade. Fosse eu inocente, e alguma coisa diria, alguma coisa sucederia. Com cada fracção de segundo do meu silêncio a minha culpabilidade enchia o espaço. Com cada fracção da minha consciência desse silêncio aumentava a minha incapacidade de falar, de agir, de me defender. A minha derrota era completa. No fim do que deviam ser poucos segundos reconheci-o inteiramente.
O Dr. Quaresma desviou o olhar do Tejo, mas não o passou por mim. Voltou-se de costas para o rio, disse-me, com um tom de quem antes nada dissera que pesasse: «E se nós nos fossemos embora?» E, avançando ele para o Arco da Rua Augusta, avancei, silencioso ao lado dele, soterrado em mim sob a acusação definitiva que não fora proferida.
A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: «O que pensa fazer?»
Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: «Não sei.» E acrescentei, passado um momento: «O doutor dirá o que quiser.»
O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: «Eu não tenho nada a dizer. Como já compreendeu, decifrei — posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade — o seu caso. O resto é consigo».
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 118.«O Roubo na Quinta das Vinhas». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976