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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Carta a Mário de Sá-Carneiro - 26 Abr. 1915]

Lisboa, 26 de Abril de 1916

Meu querido Sá-Carneiro:

Recebi, como lhe disse no meu postal de ontem, as suas cartas de 17 e 18, assim como a carta para o Santa-Rita, que ontem entreguei ao irmão, ao encontrá-lo na Rua do Ouro.

Você há-de ter estranhado o tempo que eu tenho levado para lhe escrever. É possível que se tenha, até, ofendido um pouco comigo. Peço-lhe, por amor de Deus, que o não faça. Eu vou explicar-lhe tudo, e a explicação é bem compreensível.

Eu tenho tido, com efeito, bastante que fazer. Tenho tido, é certo, várias pequenas causas a tomarem-me muitos pequenos bocados de tempo. Mas não é por isto que eu lhe não tenho escrito como eu próprio desejaria ter feito.

Em primeiro lugar, tenho o espírito feito em trapos por uma série de grandes apoquentações que me atacaram, e em parte atacam, simultaneamente. Você sabe bem qual o efeito desorientador de uma acumulação de pequenas arrelias. Imagine qual será o efeito de uma acumulação de grandes apoquentações. Uma grande apoquentação , só uma , não chega, muitas vezes, a valer, para o efeito de nos dispersar e banir de nós, sete ou oito ralações mínimas. Mas olhe que uma junção de arrelias grandes opera muito mais desastradamente sobre nós.

De há meses para cá que tenho a pesar sobre mim a gravíssima doença de minha mãe. Ela teve aquilo a que se chama vulgarmente um «nisneto apopléctico» e ficou com uma paralisia em todo o lado esquerdo do corpo. Vai melhorando — segundo as cartas que recebo — mas tão lentamente, tão incertamente, que eu nunca posso tirar do meu espírito a pressão fria da incerteza a respeito dela. Já esta angústia, hoje consubstanciada comigo, me apoquenta e me desvaira.

Acrescente-se-lhe o grande sofrimento que você — sem querer, é claro — me causou com a sua terrível crise. Não sei se você avalia bem até que ponto eu sou seu amigo, a que grau eu lhe sou dedicado e afeiçoado. O facto é que a sua grande crise foi uma grande crise minha, e eu sentia, como já lhe disse não só pelas suas cartas, como, já de antes, telegraficamente, pela «projecção astral» (como eles dizem) do seu sofrimento. Acrescente a estas duas graves razões para eu me apoquentar esta outra — que, à parte tudo aquilo, estou atravessando agora uma das minhas graves crises mentais. E imagine você que, para isto não ser tudo, essa crise mental é de várias espécies ao mesmo tempo, e por diversas razões.

Sobreponha, agora, a isto tudo uma pressão de trabalho — não de um género, mas de várias espécies.

Você calcula bem o que tem sido o resultado de tudo isto... Tenho desleixado tudo, fazendo só aquele trabalho que é absolutamente impossível não fazer.

Tenho atrasado o meu trabalho de traduções. Há mais de um mês que tenho para traduzir um livro de 100 páginas pequenas, que, normalmente, eu traduziria em 5 dias. E ainda não tenho traduzidas senão 30 páginas! Vão sempre tarde as minhas cartas para minha família. Para você, você já sabe o que tem sido. É assim com tudo, numa força absurda de perder tempo, de navegar pela costa do Inútil, e outras metafrases análogas — que todas são poucas para o que hoje vivo.

Isto serve para justificar a minha demora em escrever-lhe. Mas o facto de esperar ansiosamente notícias suas, para lhe escrever mais calmamente, tem, também, contribuído um pouco para esta demora. Peço-lhe, meu querido Sá-Carneiro, milhares de desculpas. Mas isto não podia ter sido

senão assim.

26-4-1916

Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas . Fernando Pessoa. (Introduções, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Publ. Europa-América, 1986.

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1ª publ. in Mário de Sá-Carneiro - Cartas a Fernando Pessoa. . Lisboa: Ática, 1951.