A OPINIÃO PÚBLICA [rascunho]
Entre as várias superstições verbais, de que se compõe a pseudo-inteligência da nossa época, a mais vulgarmente citada é a da opinião pública. E, como acontece com todas as superstições, que conseguem deveras enraizar-se, mas que não conseguem nunca tornar-se lúcidas, este critério instintivo respeitador da opinião pública em palavras, porque sente que há por detrás da frase uma realidade, mas pouco respeitador dela em actos, porque não sente definidamente que realidade é essa, é ao mesmo tempo o esteio e o vício das sociedades modernas.
Todos nós sentimos, qualquer que seja a nossa política, que, em última análise, toda a política tem que se conformar com a opinião pública, com a corrente predominante de opinião (corrente insistente de opinião). Quando, porém, se trata de definir o que seja uma corrente dessas, de que modo se manifesta, como se há-de distinguir a opinião pública de uma opinião parcial violenta ou intensa, o cérebro moderno, radicalmente indisciplinado, perde contacto com o problema e embrulha-se em palavras para não sentir o frio dos factos.
O problema, porém, embora complexo, não é de uma dificuldade tal que um cérebro decentemente lúcido haja de recuar ante analisá-lo. E, como, de todos os problemas modernos, é talvez o mais urgente em que se defina, porque é o que é substancial, não será porventura tempo perdido aquele se entregue à consideração dos elementos verdadeiramente constitutivos da opinião pública, e dos erros que, em torno a esse problema, se têm amontoado.
Urge, em primeiro lugar, e como é conveniente em problemas destes, reparar cuidadosamente em o que é que a frase, o termo, não significa. Comecemos por definir bem o que é que a opinião pública não é. Isso nos facilitará a investigação do que ela, efectivamente, seja.
Afastemos imediatamente os dois erros palmares, que se dão em relação a este problema. A opinião pública não significa a opinião da maioria. A opinião pública não significa uma opinião política, mesmo que se trate de uma opinião pública em matéria política. Livres destes dois erros, poderemos atirar pela borda fora os dois erros palmares da pseudo-sociologia da época — o erro democrático, e o erro de supor que a opinião pública vale pelo que se manifesta.
Tratemos, primeiro, do erro democrático.
Antes de ser inteligência, o homem é instinto; e, ao passo que intelectualmente os homens diferem muito, tanto em quantum intelectual como em conteúdo intelectual, nos instintos diferem pouco. Temos, pois, que são os instintos que unem os homens e a inteligência que os separa. Uma sociedade é uma reunião de instintos, não é um concurso de inteligências. Não são as ideias que regem as sociedades, mas sim a ausência de ideias. Um povo vale pelo que não sabe que vale.
A psicologia moderna, embora ainda por constituir como ciência completa, ou, pelo menos, organizada, chegou, porém, a uma conclusão, diametralmente oposta àquela em que apoiava o século dezoito as suas filosofias. A ciência psicológica sabe que, no
homem como nos animais, o inconsciente, ou subconsciente, predomina sobre o consciente; que o homem é primariamente um animal irracional, e apenas episodicamente racional; que o homem é, na sua essência, uma criatura de instintos, como todos os animais, e apenas por acréscimo e individualidade, um ente intelectual.
Ora uma reunião de homens, se é mais que um grupo casual em uma rua, e é esse o caso de uma sociedade, une-se por aquilo que lhes é comum, e não por aquilo que é diferente em cada um dos outros. A base da vida social é portanto o instinto, que é fundamental nos homens como nos animais (que também são gregários) e não a inteligência. O homem só é inteligente quando separado dos outros homens; junto com eles é apenas instintivo e a sua inteligência não serve, dado o caso normal, senão para esclarecer o instinto.
Se a sociedade é uma aliança de instintos, um contrato social eternamente anterior aos que nele participam, segue que os fenómenos de psiquismo de conjunto, que se dêem em uma sociedade, são fenómenos do instinto, e não da inteligência.
O primeiro corolário desta conclusão é que o sistema democrático é profundamente anticientífico, que o princípio do sufrágio, como expressão da opinião, é um erro crasso. O instinto não se exprime, o instinto não se define.
Quando o instinto procura interpretar-se, erra; por isso os partidos políticos se apoiam nos erros que a inteligência faz ao interpretar o instinto. Uma vitória eleitoral é sempre a expressão da vitória da mais plausível das interpretações falsas da opinião pública.
Votar é errar. O voto é individual, e a essência da opinião é não ser susceptível de fraccionamento em indivíduos. A opinião pública é um ente, de que os indivíduos que, sem querer, a compõem são células; a opinião pública não é uma soma, nem mesmo uma síntese, é um facto pré-intelectual.
Concluir-se-á imediatamente: Se a opinião pública é só uma atmosfera e não uma corrente, se é um estado de alma colectiva e não uma tendência para a acção, como hão-de os homens públicos governar com a opinião pública? Como hão-de saber o que ela é, se a essência dela própria é não saber bem o que é?
O erro em uma objecção destas está no conceito democrático de governo. Se se julga que governar é seguir a opinião pública, não há resposta. Mas governar com a opinião pública não é segui-la; governar com a opinião pública é interpretá-la. A sociedade tem o seu esteio no instinto; o governo é um fenómeno intelectual. Ora a relação entre a inteligência e o instinto é interpretativa.
O estado de uma sociedade não depende das suas instituições políticas, mas da coesão entre os governantes e os governados. Quando essa coesão existe, isto é, quando a opinião pública, a opinião instintiva da nação e geral, individida, os próprios governantes partilham dela, dela participam. Basta-lhe, portanto, para governar, interpretarem o que está dentro de si próprios.
Nas sociedades desnacionalizadas, nas sociedades estragadas pelas ideias estéreis do humanitarismo, do pacifismo e da fraternidade humana; nas sociedades que perderam as virtudes guerreiras e para quem o estrangeiro não é, como para as sociedades sãs, essencialmente o Inimigo — nessas sociedades os governantes perderam o contacto instintivo com a massa do povo, e não podem portanto interpretar o que não sentem. Podem ser homens pessoalmente honestos e bem intencionados; em geral não o são; mas não se pode interpretar os instintos dos outros.
Como há-de um governante interpretar um instinto de que não participa? Os governantes não nascem Shakespeares, com a arte de interpretar os sentimentos dos outros; só têm, querendo os deuses, o poder de interpretar os próprios.
A democracia é um sistema político que só aparece nas decadências. Quando uma sociedade sente instintivamente que lhe falta a coesão, espontaneamente tenta substituir a coesão por instinto por uma coesão por voto.
— Resta saber como se pode criar uma opinião pública sã e activa.
É infecunda toda a acção política que tenda a criar uma opinião capaz de se manifestar pelo voto; é infecunda toda a acção política que tenda a criar uma opinião capaz de se definir como política. Por isso só é fecunda uma acção política que crie opinião indirectamente, isto é, não tentando criar opinião para que essa opinião se manifeste, mas apenas para que ela exista.
Pela doutrina democrática, mandar é obedecer. Pela verdadeira doutrina, mandar é compreender (mandar é orientar (no)) (mandar é interpretar).
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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