Demonstrado, assim, que a Democracia moderna é radicalmente anti-social,
Demonstrado, assim, que a Democracia moderna é radicalmente anti-social, pois que um dos seus princípios fundamentais, o do sufrágio político, é substancialmente antagónico, por “intelectual”, ao não intelectualismo que caracteriza as manifestações do instintivismo social e da chamada “opinião pública”, base [...] de toda a vida política, resta, neste capítulo, que provemos que a Democracia moderna é por igual antipopular e antipatriótica. A demonstração far-se-á contrapondo o segundo dos princípios democráticos, o liberalismo, ao segundo dos princípios do instintivismo social, a conservatividade; e contrapondo o terceiro dos princípios democráticos, o pacifismo, ao terceiro dos princípios do instintivismo social, que é o antagonismo. Assim se provará, no primeiro caso, a antipopularidade da Democracia moderna, e, no segundo caso, o seu antipatriotismo.
Ao comparar os princípios liberais, ou liberalistas, com a essência conservativa do instintivismo social, temos que, logo de início, excluir uma possibilidade de erro, que é a que resultaria de se confundir conservatividade com conservantismo. Quando tivermos que considerar a opinião pública como fenómeno sempre tradicionalista (o que já provámos que era) será ocasião de encarar o problema do conservantismo, propriamente tal. O que nos preocupa agora, na análise comparativa do liberalismo da democracia moderna e da conservatividade do instintivismo social, é a definição diferencial dessa conservatividade. E, como o nome sugere conservantismo por semelhança etimológica, cumpre, antes de mais nada, distinguir.
Quando, no anterior artigo, determinámos quais os característicos fundamentais do instinto, e, portanto da opinião pública (que havíamos provado ser uma soma de instintos e não uma soma [?] de ideias), notámos que um desses característicos do instinto era a sua conservatividade, e por esse termo designávamos a peculiaridade do instinto em não se adaptar, contraposta à contrária peculiaridade da inteligência, de ser essencialmente adaptativa.
A conservatividade entende-se, portanto, como sendo aquela peculiaridade do instinto pela qual ele tende a conservar-se tal qual é, procurando, ante qualquer fenómeno externo, adaptá-lo a si, e não adaptar-se [a si] a ele. Resulta desta peculiaridade que se há tendência fundamental do instinto é a de fazer com que todas as coisas, com as quais se encontra, se convertam na sua própria substância, dele, instinto. Ora esta atitude dá como resultado nos indivíduos componentes da camada instintiva, e portanto sã, de uma nação, o egoísmo como fenómeno distintivo. O que na generalidade do instinto se caracteriza por a tendência não adaptativa, caracteriza-se na particularidade individual do instinto pela tendência centrípeta. Ora, como são as camadas populares (como vimos) as que concentram em si o instintivismo social, as que são depositárias do instinto de sociedade, segue que essas camadas são por igual depositárias do egoísmo como determinação individual desse fenómeno geral. E segue imediatamente que para uma teoria ser antipopular, basta que seja antiegoística. Basta que se lance para o seio de uma sociedade uma teoria, pela qual se ataque o egoísmo, para se lançar uma teoria pela qual se ataca o povo.
Há, evidentemente, uma excepção; esse egoísmo nasce da espontânea aplicação particular do instintivismo social, mas esse instintivismo social tem como base o sentimento patriótico. Resulta que o sentimento patriótico e o egoísmo individual têm a mesma base instintiva, mas, nados da mesma raiz psíquica, São os termos equilibradores. O homem normal só deixa de ser egoísta ante um apelo ao seu sentimento patriótico; o instinto familiar, que normalmente condiciona o egoísmo, é apenas uma extensão quase física desse egoísmo, como aliás o é o próprio patriotismo.
Sendo isto assim, não custa a ver que o princípio liberalista, ou igualitário, inteiramente se contrapõe ao egoísmo são dos homens. Busca o liberalismo a abolição de privilégios, a abolição de diferenças entre os homens; e leva isto mais ou menos longe, teoricamente, consoante a ousadia ou indisciplina mental dos teorizadores e praticamente consoante a perturbação social que se atravesse.
A abolição de privilégios, parece, a princípio, que deve ser concordante com o egoísmo natural dos homens, pois que a abolição do privilégio de um homem pode favorecer o egoísmo de mil homens; e se há aqui egoísmo ferido, é só o egoísmo do desprivilegiado [...]
Ao destruir privilégios, o liberalismo parte de um princípio falso, porque antiegoísta. Parte do princípio de que o privilégio é um estorvo, e não de que ele é uma vantagem; isto é, encara o privilégio do lado dos desprivilegiados, e não do lado dos privilegiados. Fazendo isto, o liberalismo encara o privilégio do lado antiegoísta. Encara o privilégio como uma coisa que não deve haver. Se fosse uma doutrina socialmente sã, devia encará-lo como uma coisa que devia haver em mais abundância, visto que, para
quem o tem, é uma vantagem. O erro está nisto, e tanto é um erro, que a grande época democrática chamada a Idade Média tinha a opinião contrária; o próprio povo, cioso então dos seus direitos como nunca depois o foi, tinha essa ideia.
Na Idade Média usava-se a palavra liberdade, como hoje, mas com o sentido oposto ao que hoje se usa. O povo medieval considerava a liberdade como um privilégio concedido, não como a ausência de um privilégio nos outros (Quote Pollard).
Qualquer citação de uma autoridade competente pode servir para autenticar esta asserção. Como quaisquer outras, serve a palavra seguinte, do prof. A. W. Pollard, na sua Short History of England (p.53):...
Pode o povo — sobretudo se foi oprimido — simpatizar a princípio com o movimento liberalista; mas tarde ou cedo, de desconfiar dele, passa a odiá-lo, porque, ou o liberalismo segue o seu caminho lógico e justo, e então mais tarde ou mais cedo entra em conflito com privilégios que a ele, povo, tocam já de perto; pequenos privilégios todos os têm, mais ou menos [...]; ou, que é o que em geral acontece, o liberalismo, por ser um absurdo sociológico e, portanto, encontrar atritos por toda a parte para a sua operação, gradualmente se vai desviando e vem a ser uma mera arma de espoliação, simultaneamente útil como isco para os idiotas e anzol para os objectos da cobiça. Mero implemento de ladrões, o liberalismo acaba por despertar as iras do povo; e se não as despertou antes, é que o povo, como é ignorante, não sabe o que é aquilo, ou que perigos lhe traz.
Assim, sendo antiegoísta, o liberalismo é antipopular. Para se ser “liberal” é preciso ser-se inimigo do povo, não ter contactos nenhuns com a alma popular [...] Teoria, de resto arranjada por aristocratas ingleses como arma contra a velha monarquia, e por homens de letras franceses mais como arma contra a Igreja que contra o ancien régime, sua própria origem proclama impossível a sua popularidade. Feito por quem, ou não era povo ou não podia sentir como povo, não admira que esse sistema venha eivado de todos os vícios anti-instintivistas, de todas as raivas antipopulares.
O assunto comportaria uma série muito mais extensa de observações, entre as quais a menos interessante não seria, por certo, a demonstração de que o povo é naturalmente aristocratista, de que nunca um povo foi espontaneamente democrático, de que nunca o povo defendeu, de seu, senão os seus egoísmos, e a sua pátria; nunca, nunca, excepto por perversão imposta, ou perversão da decadência, os seus “direitos”, as suas “justiças” foram assunto por que o homem do povo fizesse [?] o esforço do levantar de um braço ou de tirar as mãos das algibeiras.
Consideremos agora a oposição, mais fácil de determinar, entre o instintivismo social, no seu característico antagonismo, e a Democracia Moderna, no seu pacifismo característico.
O patriotismo, vimos nós e demonstrámos, é a base do instinto social — é, mesmo o único instinto social verdadeiro; não é, de resto, mais que um egoísmo colectivo, ou, melhor, a forma colectiva do egoísmo, base de toda a vida psíquica. Demonstrámos também que, ao contrário da inteligência, que busca compreender, e, pois que o busca, não pode odiar o que compreende, o instinto odeia tudo quanto não seja ele, que o instinto é, portanto, radicalmente antagonista. No campo individual isto dá a ânsia da concorrência, a tendência constante para esmagar e entravar o esforço alheio (no que individual) que é a base da vida da humanidade, a causa dolorosa de toda a civilização. Se o amor é a fonte de toda a vida individual, o ódio é a fonte de toda a vida social. E do ódio entre homem e homem que a civilização nasce, e não só do ódio entre homem e homem, como do ódio entre nação e nação. No campo colectivo, o egoísmo tornado nacionalismo espontaneamente odeia o estrangeiro; todo o estrangeiro, para um povo são, é o seu inimigo. A expressão vulgar «uma nação amiga», quando não seja uma amabilidade [...], como o «atento venerador e obrigado» da correspondência comercial, é um crime sociológico; há só uma nação amiga, é a própria; só há uma nação que estimamos como nação, é a nossa. O resto é lixo de teorias.
«A guerra», disse Heraclito, «é a mãe de todas as coisas.» E assim é. Maldade e corrupção humana? pecado original pesando sobre a estirpe dos homens? Seja o que for, assim é, e por certo a tese cristã da maldade fundamental dos homens tem mais base que a tese liberalista da sua bondade fundamental.
Contrapusemos, assim, sucessivamente aos três princípios fundamentais do instintivismo social, base de toda a saúde das colectividades e das nações, os três princípios fundamentais do fenómeno de baixo intelectualismo chamado a Democracia moderna. Vimos que à não intelectualidade do instintivismo se opunha a pseudo-intelectualidade do princípio do sufrágio, e que, assim, e por esse seu princípio, a Democracia moderna é anti-social. Vimos que à conservatividade do instintivismo se opunha o pseudo-altruísmo nivelador do liberalismo, e que, assim, e por esse seu princípio, a Democracia moderna é antipopular. Vimos que ao antagonismo do instintivismo social se opunha o pacifismo fraternitário, e que, assim, e por esse seu princípio, a Democracia moderna é antinacional e antipatriótica.
E assim demonstrámos que a análise escrupulosa do que seja a opinião pública, e de quais as bases psíquicas de uma vida social sã leva inevitavelmente ao esfrangalhamento integral do conceito moderno de Democracia.
Cumpre juntar a estas considerações só mais uma, tendente a esclarecer o aparecimento nesta análise de urna condicionação constante. Dissemos sempre “Democracia moderna”. Assim dissemos porque “Democracia” de per si, comporta dois outros sentidos: podia entender-se, sem este escrúpulo nosso, que o nosso argumento se entendia também com a Democracia antiga dos pagãos, sistema muito diferente, e solidamente assente na dupla base da servidão e do aristocracismo — dupla aristocratização social; e podia entender-se que o nosso argumento implicava com a democracia monárquica (tal na verdade foi) da Idade Média que, por bárbara é excluída destas considerações, e por sã alheia a elas.
Resta, agora, que demonstremos a segunda parte da nossa tese primária. Vimos já o que se podia deduzir de ser a opinião pública um instinto; vamos ver agora o que se pode deduzir de ser a opinião pública (como demonstrámos) sempre tradicionalista.
As sociedades vivem (como demonstrámos em o nosso artigo “Como Organizar Portugal”) pelo equilíbrio de duas forças — a força conservadora, ou tradicionalista e a força progressiva ou antitradicionalista. No nosso artigo “C[omo] O[rganizar] P[ortugal]“ assim o provámos; mas em verdade não houve necessidade de provas[...]
Se a opinião pública é sempre tradicionalista, segue que a opinião pública é sempre oposta ao progresso, segue também que as forças progressivas da sociedade, sobre trabalharem sempre em oposição à opinião pública, isto é, o instinto social, se acha naturalmente localizado.
Vejamos o conteúdo lógico de cada uma destas duas conclusões.
Que a opinião pública é sempre oposta ao progresso, é facto dos mais fácil e universalmente constatados pela história e pela experiência. A função social da opinião pública, como tal, é resistir ao progresso, mas, como ao progresso se não pode resistir, a função resume-se, por fim, em equilibrar a velocidade excessiva, que as classes progressivas tendem a imprimir à vida social.
Como é que, então, se há-de fazer progredir uma sociedade, se a maioria dessa sociedade se opõe sempre ao progresso? A pergunta, que parece natural, envolve um erro, e no esclarecimento desse erro, ou mal-entendido, vai a solução verdadeira do problema. Para fazer progredir a sociedade os dirigentes têm evidentemente que contrariar os instintos conservadores da opinião pública, propriamente tal. Mas a opinião pública, se, a princípio, recebe sempre mal as inovações, como tais, deixa de as receber mal quando elas obedeçam a uma de três condições possíveis:
Os progressos que não envolvem conflito com as tradições nacionais, evidentemente que não ferem a opinião pública profundamente. O estabelecimento de vias férreas, por exemplo, ainda que, por ser novidade, excitasse fortemente contra ele a opinião pública (como nos célebres discursos no parlamento britânico, e no procedimento inimigo de tantas populações pela Europa fora) não feriu senão um hábito — o hábito de estas inovações não existirem —, não atacou instinto tradicional nenhum. Este género de inovações, quando a opinião verifica que são úteis — o que é fácil que verifique — e quando manifestamente não firam as suas tradições, pertencem à esfera legítima do governo. Aqui podem os dirigentes inovar à vontade, que governam legitimamente. E assim com todas as coisas de índole administrativa, em cuja natureza não está ferirem as tradições nacionais.
Neste ponto portanto — no ponto administrativo — podem as classes progressivas fazer o que quiserem, que não encontraram obstáculo real no conservantismo são e legítimo do povo. O povo nem compreende as fórmulas e regras administrativas, nem a aplicação delas, salvo em casos de grande amplitude reformadora, atinge o conservantismo popular.
No campo de política interna, já a questão se não passa da mesma maneira. Há períodos da vida nacional em que se torna preciso adoptar medidas que vão com certeza alterar costumes assentes, que chocarão portanto o conservantismo popular. A medida do estadista está em saber fazer estas reformas sem sobressaltar e sem levantar a si próprio atritos. Os “estadistas” de mentalidade revolucionária, que resolvem os problemas eliminando um dos termos, estabelecem sempre contra si a reacção conservadora (que sobe do povo às classes dirigentes mais ligadas a ele — como às classes agrárias, que eram pelo Rei contra o Parlamento na guerra civil inglesa), e como no caso recente da reacção sidonista, contra a imperícia democrática. Nenhum problema político deve ser resolvido de acordo com a opinião popular, porque a opinião popular é sempre de opinião que o que está é que está bem. Mas nenhum problema político deve ser resolvido contra a opinião popular, porque tal solução, não sendo adaptável pelo instinto do povo, queda nula nos seus efeitos nacionais
— como a separação da igreja e do estado decretada por Costa, que não fez mais que avivar a fé católica em Portugal, resultado que, por certo, aquele pseudo-estadista não procurou.
Os estadistas de primeira ordem, como Bismarck ou Cromwell, governaram sempre contra a opinião pública. Os estadistas de segunda ordem, como Napoleão, governaram sempre com ela.
O conservantismo faz com que não haja nunca indicações positivas de opinião pública; a opinião pública nunca pede que, pede sempre que não. (Faquet.)
Não há movimentos revolucionários nacionais, a valer, senão contra o estrangeiro, ou contra-revolucionários de dentro. Só há contra-revoluções nacionais, não revoluções.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
- 58.Rascunho para o artigo “A Opinião Pública”