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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

Tão profundo é o seu pressentimento da alma pagã, que os seus poemas,

Tão profundo é o seu pressentimento da alma pagã, que os seus poemas, mau grado a sua rítmica irregular, são perfeitamente estatuais. Pareceria, a priori, que poemas sem ritmo nem rima deviam não poder [dar] uma impressão de conjuntos perfeitos. Não é isto que acontece com os poemas de Caeiro. Parecem traduções para linguagem humana de poemas escritos no idioma dos Deuses, que na versão conservam o divino equilíbrio, a divina calma, a unidade sobre-humana de obras de imortais.

Em cada verso reside a despreocupação das nossas coisas passageiras, um curioso e original [var.: estranho e novo] desprezo do transitório, obtido por um ascetismo estético e não moral; à grega antiga, os olhos postos na beleza que não passa e esquecendo em ela o mundo contingente e volúvel.

É, outra vez, verdadeiramente vivo, em carne, o ideal dos gregos da antiga Hélade. Novamente fitam olhos olímpicos o variado espectáculo do mundo. Novamente uma noção da beleza se forma, que nada tem com a moral, mas que não é formal, como o são todos os pretensos imoralismos modernos, obra eunuca de «estetas» de fingimento — Wildes, Gautiers, e outros assim, que tinham da antiguidade uma noção artificial e mesquinha.

Os numerosos erros em que temos sido educados por o exemplo de gerações passadas fazem com que seja muito difícil uma reformação do paganismo. O homem, que deseja levar os modernos pela mão, outra vez pelo caminho do Olimpo, tem, não só que desviá-los da senda cristã, o que já é difícil, mas também tirá-los daqueles falsos atalhos e cursos desviados por onde os têm conduzido os pretendidos [var.: pretensos] renovadores ou sequazes do velho espírito pagão. Quanto em nossos dias se tem dito sobre o paganismo peca por formal por não atingir, para além das aparências do paganismo, o seu íntimo espírito vivo.

Três foram as interpretações modernas do paganismo; tantos foram os erros sobre o espírito pagão. Primeiro, houve os homens do renascimento italiano, que não viram no paganismo senão o seu amor pela beleza física, e o seu culto pela perfeição formal. Vieram depois, numa degeneração de esses, os homens secos e estreitos que constituíram aquilo a que se chama o «espírito clássico» — e estes do paganismo só viram a perfeição formal, o culto da perfeição; esquecendo já, porque de ordinário eram espíritos verdadeiramente cristãos, o culto da beleza em que essoutro assentava, de que ele não era, verdadeiramente, senão uma parte. De aí a seca e estéril legião dos homens que deram, durante longos anos, leis literárias ao mundo. De aí os Petrarcas e [...] De aí a plebe estética dos Boileau, odiosa para sempre. Em seu medíocre [...] francês, tomaram por norma um equilíbrio, uma racionalidade vazia; não cuidando de que, para os antigos, tal equilíbrio, tal medida fora, não uma coisa definida, uma primeira regra da estética, porém um limite, um freio posto à íntima e desordenada exuberância que há em todo o sentimento da beleza. Não viam que a perfeição não é a beleza, senão uma parte dela; que a fronteira não é a nação, mas o que a define como tal.

Não menos estreita e falsa se bem que de outro modo [...] é a ideia moderna do paganismo, que devemos aos esforços mal-empregados de uma seita de artistas que começa com Gautier e achou o seu maior representante [?] na pessoa de Óscar Wilde. Aqui o género de erro é outro.

Um Wilde é, na realidade, tão estreito e seco como um Boileau. Hoje, é difícil vê-lo, mas o futuro longínquo [?] não deixará de notá-lo. Todo o espírito que nasceu pagão o nota imediatamente.

C[aeiro]: os últimos versos: Alguns deles eu, de boa vontade, não publicaria. São de um espírito já enfermo em que subrepticiamente a individualidade é traída por si mesma [var.: própria].

Um pensamento pensado ao rubro, e depois deixado esfriar na mente até que se lhe possa dar forma e contorno.

Não quero dizer que os gregos pensassem como românticos e executassem como estatuários. Não havia, não podia haver, essa duplicidade no seu espírito. A acção de conceber e de executar era já assim no espírito. O modo de conceber uma obra de arte é já o modo de executá-la.

1916?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Prefácio a Caeiro