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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

É muito curiosa a complexidade da simplicidade de Caeiro.

É muito curiosa a complexidade da simplicidade de Caeiro. É também muito curiosa a evolução do seu conceito do universo, ou, melhor, da falta de universo. Sendo absolutamente um sensacionista, as suas sensações são inteligências, com um raciocínio próprio, com um poder crítico próprio. Começando como uma espécie de S. Francisco de Assis sem fé, foi-se arrastando lentamente, aos rasgões nos obstáculos, através da brenha do que tinha aprendido - felizmente muito pouco. Finalmente, apareceu nu. Foi a culminância de «O Guardador de Rebanhos», dos poemas - tão novos na superfície da função mais antiga no mundo! - de «O Pastor Amoroso» e dos poemas não-anómalos dos «Inconjuntos». Esses poemas anómalos são já a invasão da verdade pela morte. Há alguns em que a visão como se perturba. O homem nu está experimentando a mortalha. Mas, por fim, e vendo a obra em conjunto, ela é o nu substantivo, porque o fato o cobria mal e o que a mortalha cobre é nada.

O seu comentário a S. Francisco de Assis dá tudo. Li-lhe uma vez, traduzindo rapidamente, parte das «Florinhas». Não li mais porque ele, indignado ou quasi, me interrompeu com incómodo próprio. «É bom homem, mas está bêbado», disse o meu mestre Caeiro. Pareceu-me isto, no repente, um impulso sem expressão apropriada; mas, logo a seguir, reparei na deliquescência de enternecimento do Santo, na candura da sua alma por trás desse e reconheci a fotografia.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»