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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

Por isso é a ti que endereço

Por isso é a ti que endereço

Meus versos saltos, meus versos pulos , meus versos espasmos,

Os meus versos-ataques-histéricos,

Os meus versos que arrastam o carro (...) dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,

Mal podendo respirar, ter-me-de-pé me-exalto,

E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!

Arranquem-me todas as portas!

Puxem a casa toda para cima de mim!

Quero viver em liberdade no ar,

Quero ter gestos fora do meu corpo,

Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,

Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,

Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,

Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!

Não quero fechaduras nos cofres!

Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,

Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,

Que me despejem dos caixotes,

Que me atirem aos mares,

Que me vão buscar a casa com fins obscenos,

Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,

Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!

Não quero intervalos no mundo!

Quero a contiguidade penetrada e material dos objectos!

Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,

Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!

Ser arremessado como uma granada!

Ir parar a... Ser levado até...

Abstracto auge no fim de mim e de tudo!

Clímax a ferro e motores!

Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!

Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!

Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem

Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso.

As mãos apertaram-me no escuro.

Morri temporariamente de senti-lo.

Seguiu-se a minh’alma a lamber o chão do cárcere-privado,

E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,

Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,

Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

Salta, pula, embandeira-te,

Deixa a sangue o rasto na imensidade nocturna ,

A sangue quente, [mesmo de longe?],

A sangue fresco [mesmo de longe?].

A sangue vivo e frio no ar dinâmico a mim!

Salta, galga, pula,

Ergue-te, vai saltando, (...)

s.d.

«Saudação a Walt Whitman». Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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