Fernando Pessoa porquê?
Como é sabido, a obra de Fernando Pessoa é constituída por inúmeros textos, dispersos uns, organizados outros pelo próprio autor, a maior parte inéditos à data da sua morte. No entanto, a obra possui uma enorme coerência baseada na construção de um universo ficcional ou dramático, cujos intervenientes se assumem como heterónimos — personalidades literárias diferentes entre si. A dificuldade em compreender a obra de F.P. está em ele não ser um só autor, mas «toda uma literatura».
O sistema literário de Fernando Pessoa baseia-se na criação de múltiplas personalidades poéticas cujas perspectivas se confrontam ou comparam, sendo o interesse de cada uma delas sempre enriquecido pela alternativa que lhe dá uma outra. Sem perceber isto e sem identificar as polaridades existentes, torna-se difícil, para o leigo, criar uma imagem integrada da obra de F.P., na qual novas leituras vão fazendo sentido.
Realmente, a obra pessoana é como um labirinto com múltiplos acessos, uma teia interminável de relações intertextuais, um universo construído a múltiplos níveis e constituído por inúmeros textos fragmentários, aparentemente não estruturados, mas entre-relacionados como um hipertexto.
O próprio Fernando Pessoa explica a natureza do pensamento associativo que subjaz à criação literária: «Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões...»
Destas características, surge então a ponte para adaptar a obra pessoana a um sistema hipermedia, ou seja, um sistema em que todas as relações desejáveis são possíveis de se construir de modo não linear, através de hipertexto ou de navegação cruzada.
O problema que se pôs, no início deste projecto, foi, portanto, como explicar o sistema literário que subjaz a esta obra, de modo a que os textos e as poesias dispersas não pareçam ao neófito esparsas, incoerentes e contraditórias. Adaptar o universo de Fernando Pessoa ao hipermeio é um desafio com seus riscos, um dos quais é necessariamente uma certa simplificação. Outra dificuldade encontrada, na organização global da obra de Pessoa, foi a existência de edições díspares e o aparente caos na fixação de textos com que a obra se nos apresenta. No entanto, é preciso que se explique ao leitor, esta situação é inevitável, porque a obra que Fernando Pessoa nos deixou está toda ela dispersa, fragmentada e, em grande parte, manuscrita, o que necessariamente obriga cada compilador a interpretar a sua grafia e a encontrar nexos entre fragmentos dispersos. A ciência pessoana nunca poderá aspirar à objectividade total, antes será campo para debates, leituras e contribuições múltiplas.
Em suma, para tornar acessível a obra de Fernando Pessoa, pretendemos que o leitor enfrentasse a sua complexidade, podendo escolher, interactivamente, o nível de profundidade da sua leitura e os caminhos de seu interesse pessoal. Acreditámos que essa liberdade poderia estimular uma motivação lúdica e estética. Quisemos, por outro lado, encontrar soluções de orientação do leitor que lhe permitissem uma apropriação progressiva do universo pessoano, desejavelmente alargável ao universo mais vasto da crítica pessoana e da literatura em geral. Por último, não foi irrelevante o desejo de contribuir utilmente para a divulgação do grande génio da literatura moderna nacional.